Em entrevista à agência Télam, em outubro de 2023, depois de ponderar que “desde que a Segunda Guerra Mundial acabou, até agora, houve guerras por todos os lados”, o Papa Francisco observa: “Foi o que me levou a dizer que estamos vivendo uma guerra mundial em pedacinhos”. De fato, depois da Segunda Guerra Mundial e durante toda a Guerra Fria sucedeu-se uma série de guerras de todo tipo e de intensidades variadas. Guerras difusas, de libertação nacional, guerras revolucionárias, guerras civis, golpes de Estado assolaram todos os continentes. Com o fim da Guerra Fria e a “universalização” da democracia como valor e do capitalismo como forma de produção econômica, os menos avisados acharam que os motivos da conflitividade haviam desaparecido e a paz finalmente reinaria no planeta. Todavia, nem por um segundo a violência cansou de deixar sua sangrenta marca. Com velhas e novas formas, com velhos e novos instrumentos, ela continuou o seu desfile de mutilação, flagelo e morte, atormentando a humanidade.
Não obstante a violência tenha sido um constante espetáculo da “guerra em pedacinhos”, como afirma Francisco, hoje parece ter assumido uma condensação específica na Ucrânia que arrepiou o sistema internacional e coagulou com espanto o antagonismo em todos os continentes: o confronto sistêmico do multilateralismo contra o unipolarismo imperial. Se até o dia 24 de fevereiro de 2022 todas aquelas violências, variadas e difusas, pareciam responder individualmente à punição que a potência hegemônica impunha a todo aquele que se opusesse aos seus interesses, o que configurava o mundo regido por regras — suas regras imperiais —, desde aquela data, em que se inicia a guerra da Ucrânia, a violência assumiu o claro sentido de “reinicialização” do sistema, orientando as variadas conflitividades vigentes. Nessa data, nem todos perceberam que o que estavam a presenciar era o “reset” do sistema-mundo e que a lógica das regras da potência, que justificava a violência punitiva por uma pretendida ordem, colapsava. O mundo já não seria como tinha sido até esse momento.
A chave explanatória desse reinício e o manual de uso do novo mundo talvez se encontrem no documento lançado em 4 de fevereiro de 2022 pelos presidentes Putin, da Rússia, e Xi Jinping, da República Popular da China, durante os jogos de inverno em Pequim, poucos dias antes do início da Guerra da Ucrânia. Nele, ambos condenam as “tentativas de alguns Estados de impor seus próprios ‘padrões democráticos’ a outros países, de monopolizar o direito de avaliar o nível de cumprimento de critérios democráticos, de traçar linhas divisórias com base na ideologia […] Tais tentativas de hegemonia representam sérias ameaças à paz e estabilidade global e regional e minam a estabilidade da ordem mundial.”
Nessa manifestação, na qual declaram uma “amizade ilimitada” (da qual o Ocidente se burlou por considerá-la supérflua – como não podia ser de outro modo para quem trai seus próprios aliados), ambas potências anunciam o desabrochar de um novo mundo como alternativa àquele regido por casuísticas regras unilaterais. Esse mundo proposto é um sistema internacional regido por leis e já não regras, onde vigore o conceito da “indivisibilidade da segurança”, no qual se respeite a autodeterminação dos povos, suas formas de governo, suas particulares histórias e suas culturas; um mundo de cooperação e solidariedade, onde as trocas comerciais sejam benéficas para todos (win-win) e não um mero cálculo de soma zero. Especialmente, um sistema-mundo multilateral como proposta de relacionamento igualitário entre países que se oponham a hegemonias incontestes. Um freio à unipolaridade que fez sua estreia fatal há 25 anos, com o bombardeio ilegal à antiga Iugoslávia em 24 de março de 1999. E esse freio foi violentamente acionado na Ucrânia.
O início da guerra econômica das sanções deixou clara uma divisão do mundo na qual as abstenções contam. Por um lado, a União Europeia nunca se mostrou tão unida. Com efeito, nos vários conflitos armados aos quais foi arrastada, a Europa sempre foi dividida. Assim foi no Iraque, no Afeganistão e na Líbia. Mas, desta vez, a Europa se sentiu mais unida e festejou a consolidação da OTAN como instrumento comum adequado para impor os interesses estadunidenses ao resto do mundo. Por outro lado, menos barulhento e mais cauteloso foi o posicionamento de grande parte dos países, seja negando, seja se abstendo da condenação econômica contra a Rússia. Ainda assim, muitos dos que aprovaram as sanções continuaram a comerciar com a Rússia direta ou indiretamente. Seja como for, os resultados esperados pela aplicação das sanções não aconteceram.
No campo de batalha as coisas começaram a ficar difíceis para a Ucrânia, e a Europa foi se comprometendo cada vez mais numa rua sem saída honrosa para satisfazer as demandas do sócio maior. Hoje, talvez mais do que na “Crise dos Mísseis em Cuba” (de 16 a 28 de outubro de 1962), o mundo está com um pé no umbral de uma Guerra Mundial de contornos e consequências imprevisíveis, mas todas elas pavorosas. Aos arrebatados discursos de alguns líderes europeus a favor de um empenho maior e direto da Europa na guerra contra a Rússia se incorporou, como uma irritante provocação, o ataque terrorista ao teatro Crocus City Hall de Moscou, em 22 de março de 2024, que deixou um sangrento saldo de mortos e feridos. O presidente Putin poderá dar uma resposta que potencializará o ascenso a mais um degrau da escada espiralada da guerra.
Até que ponto essa escalada da guerra por procuração da OTAN contra a Rússia, na medida em que convoque o empenho direto de países europeus para o conflito, não poderá funcionar como um centro gravitacional que amalgame na sua conta aqueles “pedacinhos” da guerra mundial apontada pelo Papa Francisco? Os movimentos anticoloniais do Sahel na África; o conflito israelo-palestino, a ponto de incendiar o Oriente Médio; a militarização do estreito de Taiwan e sua metástase pelo Pacífico; o espreguiçar nuclear da Coreia do Norte, entre outros conflitos vigentes e latentes, podem ver-se atraídos pela lógica centrípeta do conflito sistémico já desenhado, do unilateralismo hegemônico decadente versus um multilateralismo igualitário em gestação, e soldar as múltiplas frentes desses “pedacinhos” em uma única frente de guerra mundial. O resto do mundo, aquele que votou pela abstenção nas sanções contra Rússia, possivelmente aproveitará a crise do sistema para procurar uma posição de não-alinhamento pragmático – em defesa dos seus interesses nacionais, negociando com as partes beligerantes –, e de neutralidade “ativa”, o que significa resistir às pressões que procurem seu posicionamento bélico (daí ser “ativa” a neutralidade). As frequentes visitas à América Latina da general Laura Richardson, comandante do Comando Sul dos Estados Unidos, são um indício de que essa neutralidade e o não-alinhamento não serão fáceis nem pacíficos.
“Todo Império perecerá” anunciou Jean-Baptiste Duroselle no seu célebre livro[1]. A questão é quando e como isso acontecerá. Pode ser um lento e pacífico declínio, no qual a outrora hiperpotência procure seu espaço para uma convivência pacífica e solidária entre iguais; pode ser que persista numa resistência aguerrida e inconformada que dará lugar a um declínio prolongado e doloroso para todos; ou pode ser na tentativa de acabar com o mundo, que já não consegue controlar, ultrapassando o umbral nuclear do conflito. O certo é que nada é mais perigoso que uma potência em decadência, o que augura a perigosa passagem de uma “Guerra Mundial em pedacinhos” para um Mundo despedaçado.