A entrevista coletiva concedida nesta terça-feira (07/02) a sites independentes e a influenciadores digitais no Palácio do Planalto mostrou um Lula disposto a comprar brigas na área econômica e cauteloso na questão militar.
Na área econômica, o presidente mostrou-se disposto a comprar duas brigas grandes: indicou que seu governo questionará, por meio da Advocacia Geral da União, as regras da privatização da Eletrobras, para aumentar a participação do Estado na gestão da estatal, de modo que ela seja condizente com a fração acionária que ainda dispõe, e emparedou o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, após a decisão do Comitê de Política Monetária de manter a taxa Selic em 13,5% ao ano.
Lula não apenas fez essas indicações como chamou a privatização da Eletrobras de “lesa-pátria” e de “quase banditismo”. Comparou ainda o processo atual ao da privatização da Vale do Rio Doce. O presidente indicou que, se a União permanece com a maior parte das ações da Eletrobras (cerca de 40%), não pode ter apenas 10% dos diretores nem ficar fora da decisão de quem vai dirigi-la.
Além também de recordar o caso de Roger Agnelli, presidente da Vale do Rio Doce, indicado pelo Bradesco em situação similar, e que acabou deixando o posto após uma compra de navios em estaleiros estrangeiros, contrariando a política de fortalecimento da indústria naval brasileira.
No caso do Banco Central, Lula deu alguns assopros, dizendo que ainda não conhece bem Roberto Campos Neto, mas sugeriu que, mantida a rota de colisão sugerida na reunião da semana passada do Copom (e, segundo o ministro da Fazenda Fernando Haddad, abrandada na ata do encontro), o governo pode lançar mão de levar o Senado a votar pela manutenção ou não do atual presidente, que tem mandato fixado pela lei complementar 179, mas que pode ser exonerado em algumas situações.
Quanto ao tema dos militares, Lula foi mais cauteloso. A youtuber Ana Peslovski, do canal Meteoro, questionou o presidente se, depois do passo em falso da tentativa de golpe no 8 de janeiro, Lula não poderia aproveitar para resolver um impasse histórico, que é o da cultura golpista dos militares: “o sr. percebe que pode estar diante de uma chance de ouro de resolver um problema histórico do país; o sr. concorda que, mais do que pacificar, é preciso enfrentar este problema histórico, para que as próximas gerações não precisem sobreviver pelo que nós já sobrevivemos?”
Lula tratou a situação de forma isolada, localizando a crise no período bolsonarista. Disse que não teve problemas com os militares em seus dois primeiros mandatos, o mesmo ocorrendo com Dilma Rousseff.
Embora citasse os 15 anos de ditadura de Getúlio Vargas no poder, a intervenção no fim do governo Juscelino Kubistchek e os 21 ou 24 anos do regime militar (até 1985 ou 1988, dependendo da interpretação histórica), disse que “lamentavelmente o Exército de Caxias se transformou no Exército de Bolsonaro”. Disse ainda que considera que a Constituição deixa explícito o papel das Forças Armadas no país.
“O que aconteceu com Bolsonaro foi um desvio de comportamento de um presidente da República que resolveu ocupar todos os cargos públicos da sociedade civil com militares”, afirmou.
Ricardo Stuckert/PR
Presidente Lula concedeu coletiva a sites independentes e a influenciadores digitais no Palácio do Planalto
Houve uma tentativa de retomada do tema por Rafael Moro Martins, do Intercept Brasil, que lembrou que o ministro José Múcio Monteiro ainda mantém em postos-chave do Ministério da Defesa oficiais que são ligados aos generais Walter Braga Neto e Augusto Heleno, fiéis escudeiros de Jair Bolsonaro. “O ministro também disse que vai negociar – o termo que ele usou foi este – para que não sejam feitas ordens do dia celebrando o golpe de Estado no 31 de março”, lembrou Moro Martins, que completou a pergunta de forma bastante direta e incisiva: “esse ritmo que o ministro Múcio tem tido, que é um ritmo bem lento de acomodação com os militares, é um pedido do senhor ou o ministro Múcio tem agido com esta cautela por uma decisão pessoal dele?”.
O presidente limitou-se a responder que nunca pediu nada a Múcio neste sentido (sobre o 31 de março) e que espera que ele não tenha dito isso, porque “não temos que ficar pedindo licença. Se o governo não quiser, diz que não quer. Agora você me chamou a atenção, vou conversar com o Múcio, porque isso nunca foi preocupação minha”.
Lula também, em política externa, questionado por Opera Mundi, demonstrou que está transformando em questões práticas o discurso da política ativa e altiva. Reafirmou que não ajudará no esforço de guerra contra a Rússia de nenhuma forma e que, se o tema for assunto de reunião com Joe Biden, vai criticar os embargos econômicos a Cuba e Venezuela.
Resposta de Lula a Opera Mundi:
Durante a exposição inicial, ainda antes das perguntas, Lula falou sobre a situação dos indígenas ianomâmis e reforçou que a luta contra a garimpagem ilegal vai continuar. Disse também que não é aceitável que existam dezenas de campos de pouso de aviões ilegais na região, considerando a capacidade de vigilância via satélite. Também afirmou que, nas áreas indígenas, não será proibida apenas a exploração, mas a própria pesquisa em busca de minérios.
Matheus Alves, do site Alma Preta, questionou o presidente sobre políticas de fomento a sites e publicações independentes. Como dirigiu a pergunta a Lula e ao ministro da Secom, Paulo Pimenta, ela acabou sendo respondida por Pimenta. Ao final da entrevista, sem ser questionado novamente, Lula retomou a questão, reforçando alguns pontos já tratados pelo secretário, dizendo que o governo vai ter políticas para estruturar o setor.
Durante a entrevista, tratando da taxa de juros, Lula lembrou que, em seu primeiro mandato, podia contar com José Alencar para fazer a crítica à política de juros. Agora, sem ele – é responsabilidade direta sobre o tema, uma vez que o BC ganhou autonomia e a chefia do banco tem mandato fixo, ou seja, não pode ser afastado por decisão exclusiva da Presidência –, Lula assumiu o posto de crítico da questão, fundamental para pensar o desenvolvimento econômico e o equilíbrio social.
Embora trate de uma questão específica, essa situação de certo modo reflete outros aspectos do governo, inclusive a questão militar. Lula está à esquerda do conjunto de sua equipe econômica em temas fundamentais, como taxa de juros e estatais, compra as brigas dos povos indígenas, defende a democratização da comunicação e coloca-se, em vários temas, numa posição radical. Na questão militar, porém, ele atua com cautela – mas, de certa forma, também à esquerda de seus companheiros de governo. A questão é se essa cautela permitirá, de fato, avançar na despolitização das Forças Armadas e da ameaça permanente de tutela que os militares impõem à sociedade brasileira desde a Proclamação da República.
Veja coletiva na íntegra: