A recente invasão da embaixada mexicana pela polícia em Quito, no Equador, gerou uma onda de condenações mundo afora, com destaque para os governos das Américas. De Caracas a Washington, o repúdio foi generalizado. Afinal, um princípio básico das relações entre Estados soberanos (o mais elementar, diriam alguns) foi flagrantemente violado. Mas, cerca de uma semana antes, o mesmo princípio já voara pelos ares, literalmente, com o bombardeio israelense ao consulado iraniano em Damasco, Síria. Tomados em conjunto, tais eventos nos obrigam a indagar: estaríamos entrando em um mundo pós-diplomático?
O moderno sistema de Estados, segundo sua história oficial, tem origem nos Tratados de Vestfália, de 1648, ao final da Guerra dos Trinta Anos, que misturara conflitos domésticos e internacionais de forma sangrenta e aparentemente sem fim. Os negociadores sequer puderam ficar na mesma cidade, tamanha era a animosidade entre as partes. Ao fim, o acordo que pregava a não-intervenção nos assuntos de outro país, mesmo em caso de minorias religiosas estarem em risco, pôs fim à guerra e inaugurou uma nova era da política mundial, na qual um sistema de Estados soberanos (europeus) poderia existir com alguma ordem.
A diplomacia, que fora fundamental para estabelecer a Paz de Vestfália, teve de esperar bem mais por sua consolidação como uma prática institucionalizada e permanente. O Congresso de Viena, em 1815, que estabeleceu as regras de interação internacional após o sonho imperial napoleônico, foi um importante marco nessa trajetória; como também foi a Conferência de Paz de Paris (1919), que tentou idealizar um mundo posterior à Guerra Mundial inspirado pela nova diplomacia ‘transparente’ do presidente Woodrow Wilson. Após a Segunda Guerra, em novo recomeço, os Estados decidiram por quase unanimidade estabelecer um tratado que regulasse os contatos pacíficos entre si: nasceram, assim, as Convenções de Viena sobre Relações Diplomáticas (1961) e sobre Relações Consulares (1963).
O princípio básico de ambas é a inviolabilidade dos agentes diplomáticos, incluindo suas famílias e respectivas correspondências pessoais, moradias, bagagens e bens. As embaixadas e consulados, embora não sejam ‘território estrangeiro’ (muitas pagam aluguel!) devem ser protegidas pelo país anfitrião e, naturalmente, não podem ser violadas: pelas Convenções de Viena (assinadas voluntariamente, lembremos) somente o chefe da missão pode autorizar a entrada em suas instalações.[1] É claro que estas normas geram um sem-fim de abusos por toda a parte, desde casos de trabalho escravo nas residências de embaixadores até a impunidade de diplomatas que dirigem bêbados e acidentalmente atropelam (e matam) crianças, como tragicamente ocorrido em Nice, na França, em 1996. Podem até ser processados e condenados; mas não podem ser tocados ou presos, pois são inimputáveis.[2]
Aliás, em Paris, os guarda-costas de um dos filhos de Muammar Kadafi espancaram policiais franceses, que não reagiram porque os líbios possuíam passaportes diplomáticos. Passaportes estes que também se tornaram objeto de obscuros mercados paralelos, intensamente procurados por traficantes de armas e outros criminosos transnacionais…[3] Tudo isto é sabido. Pode gerar perplexidade e indignação no grande público, ou até mesmo campanhas da sociedade civil para coibir a impunidade diplomática em cidades repletas de delegações, como Genebra, na Suíça, onde os abusos são frequentes.[4] Mas, no fim das contas, é admitido, por todos os Estados signatários, que este é um preço razoável a ser pago pela manutenção de um mínimo de contato regular internacional, que pode ser crucial para todos, até em tempos de conflito.
O outro lado destes privilégios é igualmente conhecido: os agentes diplomáticos devem respeitar o princípio da não-intervenção à risca, abdicando de opinar sobre os assuntos políticos do país que lhes recebe. Sabemos que o princípio da não-intervenção pouco resistiu à política de poder, que abusa até de intervenções armadas, desde aquela altura. Mas o respeito aos ‘mensageiros’ da política internacional mantinha-se, de alguma maneira, como uma instituição universal da relação entre Estados soberanos. Tanto que ataques aos agentes e instalações diplomáticas imediatamente ganham as manchetes, dadas as suas graves consequências, como na tomada das embaixadas dos EUA pelos ‘vietcongues’ em Saigon (1968) e pelos estudantes islâmicos em Teerã (1979). Ou, mais recentemente, no bombardeio acidental, em 1999, da embaixada chinesa em Belgrado pela OTAN, que imediatamente desculpou-se pelo incidente (até hoje relembrado pelos chineses).[5]
Agora, o governo do México solicitou que o Equador seja suspenso da ONU até que um pedido de desculpas seja feito e aceito. O Brasil deveria apoiar tal pedido, pois não está em causa apenas a confiabilidade do Estado equatoriano durante a gestão de Daniel Noboa, mas também a segurança de todo o pessoal do Itamaraty naquele país. É provável que o pequeno país andino sofra as consequências de sua ação. Mas a ação israelense já ficou impune (como sempre) e as consequências desta impunidade podem começar a se revelar em casos como o ocorrido em Quito. Justo no Equador, país que havia albergado por sete anos em sua embaixada londrina a Julian Assange, criador do Wikileaks e perseguido político por revelar crimes de guerra dos EUA contra jornalistas da Reuters durante a Guerra do Iraque. Apesar de toda a pressão, os policiais britânicos jamais entraram na embaixada até que o chefe da missão equatoriana lhes autorizasse.
A lição é clara: para países fracos, sem excedentes de poder no sistema internacional, o respeito às regras comumente acordadas pode ser uma garantia contra os abusos dos mais fortes. Não é uma garantia absoluta, mas é das poucas que funcionaram em muitas ocasiões. O desprezo equatoriano pela norma que protegera a si próprio é um tiro no pé cometido por um governo neoliberal em seu afã de perseguir o mais conhecido político de esquerda que sobrou naquele país após o exílio de Rafael Correa. No entanto, para os sucessivos governos de extrema-direita em Israel (país que também é signatário das Convenções de Viena) a nova prática pode ser vantajosa a curto e médio prazos, pois num mundo pós-diplomático é a força – e somente a força – que fará a lei: Might Makes Right, como diz-se em inglês. A questão é saber qual a durabilidade de tal estratégia se todos decidirem agir assim em um mundo repleto de armas nucleares e outras infinitas formas de autodestruição da humanidade.
Se um mundo politicamente dominado por Estados soberanos com contatos diplomáticos mútuos era deveras imperfeito, o mundo pós-diplomático entre esses mesmos Estados, que aos poucos se anuncia no horizonte internacional, pode ser ainda pior.
(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.