Alguns bons livros denunciam-se no índice. É o caso de Os Anos com Laura Díaz. Quem o lê já tem uma bela idéia do que vem pela frente. Mas, mais que isso, é tomado por uma curiosidade que precisa ser saciada.
O primeiro capítulo chama-se Detroit: 1999. O segundo, Catemaco: 1905. O terceiro, Veracruz: 1910. Nota-se um discurso que une tempo e espaço, que se deslocam passo a passo, num caminhar ritmado, seguro e firme. A organização prévia, tradicional, em vez de engessar, acaba por dar força ao romance.
Laura Díaz é a avó do narrador, que começa a contar a história em primeira pessoa. Está em Detroit, para fotografar um mural do artista mexicano Diego Rivera. A arte mexicana pós-revolucionária incluiu novos sujeitos e novos “suportes” para pintá-los. Esses artistas socialistas tornaram-se populares mesmo entre a elite norte-americana, que os convidou a produzir obras em centros industriais como Detroit.
Algumas vezes, a burguesia norte-americana se arrependia, como se passa com o mural de Siqueiros em Los Angeles. Cobriram-no de cal, mas, no fim do século, ele é recuperado.
Entretanto, o que interessa a Santiago, contratado por uma rede de televisão para a produção de um documentário sobre os muralistas mexicanos, não é exatamente a pintura de Rivera, mas a decadência econômica da cidade que se tornou um dia a capital mundial do automóvel. Não é arte que busca, portanto, mas a história.
A arte serve como ponto de partida, pois é num mural de Rivera que o narrador encontrará sua avó e passará a narrar sua vida e a vida do país – e a do século, de uma perspectiva mexicana. Também contará a própria história, que começa com o primeiro Santiago, o revolucionário irmão de Laura, morto prematuramente pela repressão política que marcou o século mexicano. Haverá um segundo e o terceiro, que é o narrador. Se o livro não é um melodrama, faz uso dele – mas, assim como Fuentes não tem medo do Mickey Mouse, o bom leitor não deve temer a boa utilização do gênero.
Ocorre que, para Fuentes, as culturas só crescem quando estão em contato constante com outras culturas. E, como a sua visão do século que viveu é, de certa forma, positiva, trata de um México que se contamina de outras influências, mas também ajuda a criar novos mundos e idéias fora de suas próprias fronteiras.
Daí o deslocamento espacial, que inclui novas passagens pelos EUA, por Lanzarote e por uma série de pontos do México. A história de um país, nesse sentido, não existiria sem a história dos outros. E a história dos outros países seria diferente se não houvesse esse lugar tão único e, ao mesmo tempo, tão universal: um país em que o presidente Porfirio Díaz, apesar da ascendência indígena, mantinha um ministério composto apenas por brancos – para aparecer bem nas fotos; um país em que entrevistas concedidas a jornais norte-americanos mudam os rumos da política local.
Assim, além de todas as turbulências políticas que o século de Laura Díaz acumula, há a discussão das heranças culturais de colonizadores e indígenas, de brancos e negros, que se encontram e trocam difíceis experiências.
A história do México sempre foi uma preocupação de Carlos Fuentes. Desde o início de sua carreira literária, passando pelo seu conhecido romance, A Morte de Artêmio Cruz, trata do modo como a vida política mexicana se organiza e como ela corrompe o cotidiano do país.
Agora, Fuentes, de certo modo, revê esse mundo. Nem só de corrupção viveu o século 20 no México e na América Latina. E é isso que Santiago descobre ao recontar a vida da avó materna. O século 20, mostra o romance, foi de dor, de sofrimento, de criação de novos e sofridos mitos. Mas foi também de alegrias, vitórias, conquistas.
O balanço, assim, é também um olhar para o futuro. Se esse século não foi tão mal quanto achávamos, talvez o futuro não seja tão negro quanto o pintam. E as dores passadas nesses anos talvez sejam tão fundadoras quanto os de Cósima Kelsen, a avó de Laura Díaz que teve a mão decepada por um bandido quando fazia uma viagem à Cidade do México, para fazer compras, em 1870. A mão decepada, que impressionou a menina Laura, era apenas uma dura marca, que a família soube superar. Assim também deve se passar com o século 20, na opinião de Carlos Fuentes.
*Publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo, em 30.jul.2000.
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