Parte integrante da cantilena conservadora em relação à política externa do atual governo é a tese de que o governo Lula não pratica uma “política de Estado”, mas, sim, uma “política de partido”.
Como se não bastasse o assessor de política externa ser homem de partido, o próprio chanceler Celso Amorim filiou-se ao Partidos dos Trabalhadores (PT). Isso é o que dizem sem pestanejar alguns doutos críticos. Parecem esquecer a filiação do ex-chanceler Fernando Henrique ao Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), a alta plumagem tucana do ex-ministro Celso Lafer (tesoureiro da campanha eleitoral de FHC), o pertencimento de Olavo Setúbal ao Partido Popular (PP) ou as notórias ligações partidárias do também ex-ministro Abreu Sodré, para não alongar a lista nem fazer comparação com outros países. Em qualquer governo sempre existe algum viés partidário. A implementação de políticas de Estado não é um mero exercício técnico. O interesse nacional é interpretado pelo partido ou pela coligação partidária que a sociedade conduziu à direção do Estado.
A sociedade tem ao alcance das mãos os instrumentos institucionais de controle do governo. Cabe à oposição valer-se deles sempre que considerar oportuno e tiver força para fazê-lo. O fato de o governo Lula ser um governo de esquerda não o exime de ter princípios. Ao contrário, torna esses princípios mais imperativos.
Não serão, evidentemente, os mesmos princípios de governos anteriores, para os quais a defesa do interesse nacional devia ser comedida, especialmente se ela afetasse os interesses de grandes potências. O Brasil não podia “subir acima de suas sandálias”… O fato de ter princípios e de defender os interesses do país não impediu – ao contrário – o governo Lula de manter excelentes relações com os Estados Unidos e com os países da União Europeia. Sabendo-se respeitar, o Brasil foi respeitado.
Se ele respeitou e até mesmo valorizou experiências políticas em curso em vários países da América do Sul, foi porque nelas avistou – a despeito das diferenças que as separam da experiência brasileira – oportunidades excepcionais de construção nacional, de ampliação da justiça social e de renovação institucional, essenciais para a convivência democrática, harmônica e solidária das nações. Desde fins do século XIX, a humanidade enfrentou graves perturbações econômicas, que transcenderam o espaço nacional e se irradiaram por um vasto conjunto de países, transformando-se em crises globais.
Além de seus desdobramentos econômicos, sociais e, muitas vezes, políticos, essas crises trouxeram à tona problemas de fundo, aspectos pouco visíveis das sociedades por elas afetadas, explicitando mazelas até então despercebidas aos olhos da maioria dos governantes e dos analistas. Muitas dessas crises, sobretudo as mais radicais, além de seu impacto imediato, ensejaram mudanças relevantes, sobretudo quando encontraram forças sociais e dirigentes capazes de imprimir outro curso ao processo histórico.
Esse foi o caso do crack de 1929, que mergulhou o Brasil e toda a América do Sul em grave depressão. O colapso de 1929, ao mesmo tempo que revelava as mazelas de nosso modelo primário-exportador, criou as condições para sua superação, impulsionando a industrialização do Brasil.
Crises mais recentes – como a mexicana (1995), a asiática (1997) e a russa (1998) – expuseram a economia brasileira a graves constrangimentos. O impacto causado nessas três conjunturas, especialmente a de 1998, explica-se, centralmente, pelo desacerto das políticas seguidas pelos governos de turno, que não foram capazes de construir defesas sólidas contra ameaças visíveis. O enfrentamento vitorioso de crises mundiais por parte de governos nacionais – como ocorreu em boa medida nos anos 1930 – deu-se por meio da aplicação de políticas econômicas contracíclicas que permitiram a recuperação da economia e, não raro, a abertura de um longo ciclo de crescimento.
No caso brasileiro, a percepção de que o país vivia um momento de transição fez seu governo adotar com anterioridade políticas contracíclicas, que tiveram um efeito fortemente dissuasivo sobre a crise.
Os dois exemplos mais visíveis são as políticas sociais implementadas desde 2003 e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a partir de 2006.
As políticas sociais – que não se reduzem ao Bolsa Família – contribuíram para a construção de um grande mercado de bens de consumo de massas que, pelo estímulo da demanda, permitiu que a roda da economia não se detivesse.
Já o PAC – bem mais que um conjunto de obras – transformou-se em um elemento fundamental para a retomada do desenvolvimento sustentável, interrompido há mais de duas décadas. A partir dessas duas grandes iniciativas, criaram-se todas as condições para definir um novo projeto nacional de desenvolvimento. Ele não será o resultado de puros exercícios teóricos, como tantas vezes no passado, mas estará fundado no êxito de importantes iniciativas de caráter estruturante, desenvolvidas nestes últimos anos.
A reação da economia brasileira diante da crise demonstrou que a globalização não é um processo unilateral, uma espécie de atmosfera perversa que sufoca sem apelação economias nacionais, deixando-as sem alternativas próprias, como procurou fazer crer o pensamento neoconservador há pouco tempo.
Da mesma forma que o Brasil preparou a transição de sua economia, de sua organização social e de suas instituições para níveis superiores, é fundamental à política externa debruçar-se sobre a cena mundial, para entender o momento de transição que se vive. Somente assim será capaz de estabelecer um conjunto de ações que, aproveitando o acúmulo de forças até agora realizado, contribua para que o mundo que visualizamos como possível se transforme em nova e promissora realidade.
*Marco Aurélio Garcia é assessor para assuntos internacionais da Presidência da República. Trecho extraído do livro Brasil: Entre o Passado e o Futuro (Boitempo/Perseu Abramo, 2010; 200 p.; R$ 35).
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