As imagens que chegam de Gaza são cada dia mais horrendas. E não chegam apenas por canais obscuros ou fontes duvidosas. Basta acompanhar a grande imprensa israelense, ou mesmo a mídia corporativa estadunidense, para se ter uma noção do inferno em que se transformou a vida do povo palestino na “Terra Santa”. Alguns países latino-americanos e caribenhos romperam relações diplomáticas com Israel (Bolívia, Colômbia, Belize) ao passo que outros retiraram seus embaixadores (Chile e Brasil). Afinal, o genocídio em curso, cada vez mais explícito, e até reivindicado como meta declarada, obriga os defensores dos direitos humanos a uma tomada de posição. Mas qual a postura dos Estados europeus neste momento crucial de defesa da dignidade humana?
Até o momento, nenhuma capital europeia retirou o seu embaixador de Israel, nem quando tiveram seus homólogos retirados por Tel Aviv. Embora certos governos e até mesmo o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, tenham expressado críticas e feito gestos no sentido de interferir no conflito (como reconhecer o Estado Palestino), nenhum deles ousou até agora fazer a mesma pressão diplomática que os latino-americanos tiveram a coragem de iniciar, junto de Estados importantes de outras regiões, como Turquia e África do Sul. Como é sabido, este último abriu um processo contra Israel na Corte Internacional de Justiça (CIJ) e aquele rompeu relações econômicas. Menos sabido é que um país centro-americano, a Nicarágua, também abriu um processo na CIJ, neste caso contra a Alemanha, pela violação da Convenção sobre Genocídio, por conta do fornecimento de armas alemãs usadas por Israel em Gaza.
Nem mesmo aqueles líderes que desembarcaram em Tel Aviv logo após os ataques do Hamas de 7 de outubro parecem impelidos a mudar de rumo diante dos fatos. Emmanuel Macron, Rishi Sunak, Olaf Scholz emprestaram publicamente seus rostos, e hipotecaram a dignidade de suas nações, a qualquer reação futura israelense, uma demonstração de apoio incondicional (mantido até agora), além de angariarem respectivamente para a história da França, Inglaterra e Alemanha mais um genocídio, ao lado de uma porção de crimes contra a humanidade, para sua infame coleção. Três países que são conhecidos nos livros de História pela introdução de valores europeus, como a noção de direitos humanos (França), a ideia de liberdade individual e o primado da lei (Inglaterra), e os imperativos éticos (Alemanha), que deveriam ser categoricamente seguidos pelas mentes civilizadas, racionais e superiores do mundo ocidental.
Nenhum ataque a hospital, nenhuma matança de civis em campos de refugiados, nenhuma criança queimada ou decapitada, nenhuma universidade implodida com dinamite ou soldados que riem ao cometer tais atrocidades (que eles mesmos gravam); nada disso foi suficiente para que aqueles líderes europeus alterassem sua relação diplomática oficial com Israel, nem mesmo quando a prisão do primeiro-ministro israelense é requisitada pelo Tribunal Penal Internacional, do qual toda a Europa faz parte. Não se cogitou reconhecer a um líder da oposição como legítimo mandatário, chefe de Estado temporário e não-eleito do país. E olha que não faltam protestos nas ruas contra o governo em Tel Aviv, brutalmente reprimidos, por sinal.
No entanto, em relação à Venezuela bolivariana, tais relações foram drasticamente rompidas por anos, quando os europeus, em conjunto, decidiram reconhecer a soberania de um autoproclamado “presidente” individual em vez do governo legalmente (e, de fato, constituído) do Estado Venezuelano, que, aliás, seguia representado normalmente nas Nações Unidas.[1] Somente voltaram a reconhecer a realidade, bem como a respeitar o direito internacional, quando precisaram apressadamente reatar relações diplomáticas com o governo realmente existente em Caracas ao perderem, por nova inépcia diplomática, o gás russo que sempre lhes abastecera o continente. Por amnésia colonial ou desfaçatez imperial, ainda não se lembraram de pedir desculpas, nem tiveram a cortesia de devolver os ativos (reservas de ouro, por exemplo, estocadas em bancos britânicos) que foram roubados do povo venezuelano e entregues a um aventureiro de extrema-direita, repleto de ligações com as milícias (paramilitares) locais e as do país vizinho, a Colômbia, como foi esse personagem chamado Juan Guaidó.[2]
Assim, qualquer que seja a posição de cada um sobre o chamado “regime de Maduro”, não há comparação possível com as atrocidades cometidas pelo “regime sionista”, especialmente quando liderado por Netanyahu e cia. O fechamento de alguns canais de TV, desavenças eleitorais e perseguições políticas a dissidentes (até de esquerda) imputadas ao chavismo não podem ser, para nenhuma mente racional e para nenhum coração humano, comparáveis com aquilo que está em curso na Palestina ocupada e em Gaza.
Não se sabe do exército bolivariano exterminando civis em massa, nem mesmo os da oposição, com aviões e mísseis, assim como nunca ouvimos dizer que Chávez ou Maduro atacaram comboios de trabalhadores humanitários (quando disseram-no, a farsa foi revelada logo em seguida).[3] A liberdade de imprensa pode não ser total, mas onde é? Certamente não em Israel, onde a Al Jazeera foi banida, ou na Europa, onde não se pode assistir à “propaganda de Putin” (somente a propaganda ocidental é permitida). Mas jamais soubemos de bombardeios militares bolivarianos a correspondentes na Venezuela, nem de franco-atiradores que miram repórteres internacionais.[4] Como é óbvio, ninguém jamais acusou Chávez ou Maduro de genocídio, isso nunca foi sequer um tema de discussão. E, mesmo assim, foi sobre o regime bolivariano, e não sobre os mandatários genocidas israelenses, que a diplomacia europeia achou melhor impor sanções e sair à procura de outro representante legítimo para entreter relações oficiais.
Quais valores explicam tal escolha? Fica a cargo dos europeus a tarefa de responder – o que não farão, porque obviamente não se dão ao trabalho de dialogar com gente da “selva”, como nos caracterizou o próprio Borrell em ocasião recente. Aos olhos do mundo, no entanto, a resposta é clara. O racismo é um valor europeu, foi inventado lá. Aliás, a própria ideia de Europa faz parte desta invenção racializada, ao transmutar o discurso referente à cristandade ocidental, eivada de espírito cruzadista, é certo, em um construto identitário-científico-racial, que torna-se, por força, colonialista: o ego conquiro, que Dussel nos descreve. A escravidão racializada, portanto, é obra da Europa moderna, assim como a ideologia eugenista. O nazismo e o fascismo são fenômenos europeus; o moderno anti-semitismo também. O Holocausto é alemão. A inquisição é católica, especialmente ibérica. O capitalismo nasce eurocentrado, e sua racionalidade específica é o eurocentrismo.[5] Não é só isso. Mas é tudo isto – e um bocado mais.
É difícil dizer o lugar que a Europa irá ocupar nos livros da História Universal escrita no futuro, pois talvez até a noção de uma história evolutiva e linear seja superada quando a historiografia europeia não mais balizar todos os currículos e deixar de indicar os cânones monopolistas de nosso pensamento. Mas uma coisa é certa: se antes a infâmia era ter um rei europeu (um rei corrupto, fujão e não-eleito por ninguém) mandar “que se cale” a um presidente latino-americano, democraticamente eleito em uma ex-colônia daquela monarquia, hoje são os próprios estadistas europeus que se calam a si próprios, bem como tentam calar seus concidadãos que levaram a sério os tais valores europeus.
“A Europa é indefensável”, dizia Aimé Césaire.[6] Com certeza o foi, e é até hoje. Eis, agora, o dilema-mor do velho continente, cujo resultado importa ao resto do mundo: quais valores europeus prevalecerão – e que força social é capaz de liderar tal decisão.
(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.