O presidente da Bolívia, Evo Morales, provocou uma controvérsia na reunião da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes da ONU em Viena, na semana passada, ao solicitar que a planta da coca seja retirada da lista de substâncias narcóticas. Para o encontro, que tinha em pauta definir uma política internacional de controle sobre as drogas para a próxima década, o pedido foi ousado.
“[Evo] mostrou a folha para eles e disse que, para nós, ela é cultura e vida”, disse ao Opera Mundi o ex-deputado Dionicio Núñez, da região 'cocalera' de Yungas (no Altiplano boliviano), que acompanhou Morales em Viena. “Ele disse que o 'pijcheo' [costume de mascar a folha, que se pronuncia pic-cheo] não causa nenhum dano. E disse que 'por causa disso que sempre fiz na vida, deveriam me levar para a prisão; que me levem'”, contou Núñez, repetindo as palavras do presidente. Segundo o ex-deputado, os representantes das delegações internacionais e ONGs reagiram com risos.
Mas, para as dezenas de milhares de 'cocaleros' no país andino, não há nada engraçado no fato de sua planta tradicional ser proscrita pela ONU. Para os moradores da região, seu modo de vida está sob ameaça constante por causa das tentativas de erradicação do cultivo e um aspecto central de sua cultura é considerado uma substância condenável.
Foi com isso em mente que 'cocaleros' bolivianos se reuniram na Praça San Pedro, em La Paz, para fazer uma vigília enquanto Evo estava em Viena. Alguns vestiam camisetas com os dizeres “A folha de coca não é droga”.
“Estamos aqui porque queremos que o mundo pare de travar uma guerra contra nossa folha ancestral”, disse um dos agricultores enquanto jogava álcool sobre uma fogueira de coca no meio da praça. “Só porque estrangeiros fabricam droga com nossa folha, não significa que a planta seja prejudicial. Nossa planta é um benefício para a humanidade, não uma ameaça”.
De fato, segundo a socióloga boliviana Silvia Rivera, especialista em questões da coca, a planta pode ajudar na cura de várias doenças. “A osteoporose, o diabetes e outros 18 problemas de saúde seriam tratáveis se pudéssemos ter acesso à folha”, garante.
Alimento saudável
Uma pesquisa realizada na Universidade de Harvard descobriu que a folha de coca tem três vezes mais cálcio que o leite e é rica em ferro, proteínas e vitaminas. Há muito tempo, a Bolívia tenta explorar o lado salutar da planta, exportando chá de coca e desenvolvendo sua incipiente indústria local que fabrica biscoitos, pães e massas a partir da farinha de coca, em substituição à de trigo. Mas a única maneira legalizada de o país tornar estes produtos disponíveis no mercado mundial é obter a aprovação da ONU.
As reações à idéia de retirar a coca da “lista negra” vêm sendo diversas. Quase imediatamente, a embaixada dos EUA em La Paz anunciou que Washington não apoiaria a solicitação boliviana. Dionicio Núñez afirma que as delegações da Colômbia e do Peru foram as primeiras a se declarar contra a proposta em Viena. Os dois países têm significativo fluxo comercial com os Estados Unidos, recebem verbas de Washington para combater as drogas e são, respectivamente, o campeão e vice em produção de coca. Mas alguns países europeus, garante o ex-deputado, receberam a idéia com entusiasmo.
Utopia
No entanto, a despeito do número de países que apóiem ou rejeitem o pedido, poucos acreditam que a ONU o leve a sério.
“É essencial retirar a folha de coca da lista? Claro, mas também é impossível”, resigna-se Silvia Rivera. Ela explica que a indústria farmacêutica, que financia programas da ONU, não recebe bem novos medicamentos naturais. “Pensar que eles vão permitir que entre no mercado mundial algo que vai tirar uma parte fundamental do negócio deles é uma utopia, uma ilusão”, diz. Além disso, os EUA e outros países alegam que o fornecimento irrestrito de coca levaria a uma explosão no tráfico de cocaína.
Nuñez também reconhece a improbabilidade. “Embora não se mude a convenção, devemos quebrá-la”, afirma, acrescentando que ele próprio tomou a iniciativa ao levar para Viena amostras de biscoitos de coca e aguardente da planta para que outras delegações provassem o lado saboroso da planta. “Todos perguntaram onde podiam comprar. Pois é: não podem. Então é preciso levar os produtos até eles. Não se deve esperar para ver se vão mudar ou não as convenções”.
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