A decisão tomada nesta quarta-feira (17/05) pelo presidente equatoriano Guillermo Lasso de acionar o instrumento da “morte cruzada”, com o qual se dissolveu a Assembleia Nacional (unicameral) e solicitou às autoridades eleitorais a convocação de novas eleições gerais no país, é mais um capítulo da crise política instalada no Equador já há alguns meses.
Para tomar tal medida, mandatário omitiu a verdadeira razão pela qual escolheu esse caminho: o processo de impeachment que ele enfrentava nessa mesma Assembleia Nacional, por denúncias de peculato e corrupção passiva, no qual ele tinha poucas chances de ser inocentado.
O processo contra Lasso é um dos elementos dessa crise política, que por sua vez é o resultado de questões econômicas e sociais que sufocam o Equador. A melhor forma de contar essa história é começar pelo final, ou quase isso, contando como chegamos ao processo de impeachment.
O declínio de Guillermo Lasso
Em termos políticos, a crise se iniciou há alguns meses, quando o presidente Lasso passou a confrontar a Assembleia Nacional (de maioria opositora), com a tentativa – sem sucesso – de impor decretos para suas políticas neoliberais sem necessitar da aprovação do Parlamento.
O fracasso dessa iniciativa levou o mandatário a tentar uma cartada mais ousada: um referendo, realizado em fevereiro passado, no qual se propunham oito mudanças constitucionais, entre as quais estavam a diminuição de número de membros do Congresso, que atualmente são 137, e a imposição de um número mínimo de representantes dos movimentos políticos mais votados – o que diminuiria sua minoria dentro do Parlamento.
Além disso, o referendo também propunha dar mais poder ao presidente para intervir na nomeação do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social (CPCCS), órgão criado para, como seu nome diz, dar mais poder à cidadania e movimentos da sociedade civil para participar e fiscalizar as decisões de Estado.
Essa votação aconteceu no dia 5 de fevereiro e terminou sendo um grande fracasso para o governo, já que a maioria da população escolheu votar “não” às oito perguntas, rechaçando as mudanças propostas pelo presidente.
Para tumultuar mais o cenário governista, o referendo aconteceu no mesmo dia em que se realizaram as eleições regionais e municipais, nas quais a direita neoliberal foi derrotada. No âmbito regional, o partido governista Movimento Criando Oportunidades (CREO) e seus partidos aliados de centro-direita não elegeram nenhum governador de província em todo o Equador. No caso dos municípios, ficaram apenas com prefeitos de cidades pequenas.
Ademais, Lasso viu o principal partido da oposição, o Revolução Cidadã, legenda de centro-esquerda liderada pelo ex-presidente Rafael Correa], conquistar as prefeituras da capital Quito e de Guayaquil, as duas cidades mais populosas do país, e também as duas disputas provinciais mais importantes: Pichincha, que inclui a região metropolitana de Quito, e Guayas, onde se encontra o porto de Guayaquil.
O processo de impeachment
Essa ampla vitória eleitoral foi o ingrediente que faltava para que a oposição avançasse na iniciativa do processo de impeachment contra o mandatário, que já estava sendo especulado há alguns meses, mas que passou a ser uma possibilidade concreta no início de março, a partir do parecer da Comissão da Verdade, Justiça e Combate à Corrupção.
A Comissão investigou as denúncias sobre uma rede de corrupção envolvendo diversas empresas públicas, e que, a partir das provas coletadas, recomendou a abertura do processo de impeachment.
No final de março, o Tribunal Constitucional do Equador declarou a admissibilidade do processo de impeachment contra Lasso, baseado no parecer da Comissão de Combate à Corrupção. O texto acusava o mandatário por três diferentes casos ligados ao escândalo conhecido pela imprensa equatoriana como “O Grande Chefão”, e que envolviam crimes de corrupção passiva e ativa, desvio de dinheiro público e atentado contra a segurança pública do Estado, entre outros.
No entanto, a bancada governista, com a ajuda do presidente da Assembleia Nacional, Virgilio Saquicela, membro do partido governista CREO, questionou as denúncias e obteve um parecer favorável da Comissão de Supervisão e Controle Político da Casa, que só considerava uma denúncia admissível: a do Caso Flopec, no qual Lasso teria cometido crimes de peculato e corrupção passiva ao favorecer a empresa norte-americana Amazonas Tanker Pool em contratos com a estatal Frotas Petroleiras Equatorianas (Flopec).
Com essa manobra, os apoiadores de Lasso conseguiram travar o processo e ganhar tempo, até o dia 9 de maio, quando a líder da bancada opositora, Viviana Veloz, do Revolução Cidadã, apresentou uma resolução para que o processo de impeachment fosse retomado apenas com a denúncia do Caso Flopec, a qual foi aprovada e determinou a retomada do processo.
A primeira sessão após a retomada do processo aconteceu justamente nesta terça-feira (16/05), e contou com a presença do próprio Lasso para realizar sua defesa. Durante quase uma hora de exposição, ele rechaçou as acusações, afirmou que o processo era “infundado” e chamou os deputados opositores de “antiparlamentares”, por considerar que eles não acreditam nas leis e que “as destroem”.
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Lasso anunciou dissolução do Congresso equatoriano e a realização de novas eleições ainda este ano
Menos de 24 horas depois, Lasso decidiu acionar o decreto da morte cruzada, decisão considerada, por alguns analistas equatorianos, como um indício de que o presidente reconhecia que não teria condições de ser inocentado no processo.
Um dos elementos que corrobora essa versão é o fato de que a resolução que retomou o processo obteve 88 votos a favor. Em uma eventual votação final para terminar a destituição ou não de Lasso, seriam precisos 92 votos, o que significa que a oposição estava a apenas quatro votos de alcançar a maioria necessária para derrubar o presidente.
As demais crises equatorianas
Além da crise política, a situação econômica e social do Equador tampouco favoreceu o presidente Lasso. No entanto, deve-se reconhecer que os problemas nesse aspecto tiveram início antes do seu governo, durante o mandato do seu antecessor, o ex-presidente Lenín Moreno.
Moreno foi eleito em 2017 com o apoio de Rafael Correa, mas traiu seu aliado político meses depois, ao promover processos na Justiça contra ele, que escapou da condenação, após conseguir asilo político na Bélgica, país natal de sua esposa.
A traição de Moreno também foi programática. Seu governo não seguiu a linha progressista e de fortalecimento do papel do Estado, promovida pelos governos anteriores, e adotou uma política de ajustes econômicos que era defendido pelos setores conservadores, incluindo Lasso.
Essas políticas incluíram o decreto que estabeleceu a “autonomia” do Banco Central, que passou a não responder ao Ministério da Economia, um pacote de medidas que incluía sucessivos cortes de gastos públicos e aumentos de preços, especialmente dos combustíveis, ambos fatores estimulantes do aumento da inflação.
Essas medidas provocaram a crise social que se iniciou no país em outubro de 2019, quando centenas de milhares de pessoas realizaram protestos quase diários nas principais cidades do país, com grande participação de organizações, especialmente do movimento indígena. Uma onda que durou por meses e que só se interrompeu em abril de 2020, devido à pandemia de covid-19.
Nesse momento, se verificou outro aspecto da deterioração dos serviços públicos no Equador devido aos cortes de gastos promovidos por Moreno. O país foi um dos que apresentou maior calamidade sanitária na região durante os primeiros meses da pandemia, com milhares de casos registrados e mortes. Alguns meios chegaram a destacar o caso equatoriano devido à quantidade de cadáveres que eram deixados nas ruas por falta de espaço nos necrotérios do país.
Outro problema foi o acordo realizado em setembro de 2020 com o Fundo Monetário Internacional (FMI). A gestão de Moreno vinha negociando há meses com as autoridades do organismo, mas só conseguiu concretizar o empréstimo de US$ 6,5 bilhões quando a pandemia obrigou os movimentos sociais a saírem das ruas e dar um respiro ao governo.
Lasso chega ao poder
O governo de Moreno contou com o apoio do partido de Lasso para aprovar todas essas medidas. Porém, durante as eleições presidenciais de 2021, o ex-banqueiro soube impor o discurso de que, apesar da sintonia ideológica com seu setor, o então presidente ainda era um representante da esquerda, já que foi eleito quatro anos antes com o apoio de Correa.
Assim, Lasso conseguiu pendurar no candidato da Revolução Cidadã, o economista Andrés Arauz, a responsabilidade pelo fracasso do governo de Moreno, e conseguiu se eleger presidente, finalmente, em sua terceira tentativa.
Seu governo chegou não só para dar continuidade às políticas iniciadas durante a gestão de Moreno, como para aprofundar as reformas neoliberais.
Os resultados também não foram diferentes: em junho de 2022, já com a pandemia parcialmente superada, se iniciou outra forte onda de manifestações populares contra as políticas econômicas, novamente com grande participação dos movimentos sociais, tendo protagonismo das organizações indígenas.
Porém, diferente de Moreno, Lasso reagiu com muito mais truculência aos protestos, com seguidos decretos de estados de exceção, incluindo toque de recolher e uso de forças militares para conter os manifestantes – medida que ainda está vigente em três províncias.
Em sua defesa, Lasso afirma que promoveu também mesas de diálogo entre o governo e o movimento indígena, logo após os protestos de 2022, mas a verdade é que elas jamais avançaram a uma negociação real, por falta de participação dos representantes do governo nas reuniões.
Entre os índices sociais que demonstram a situação de calamidade que provoca a revolta social equatoriana estão o aumento da pobreza [de 22% em 2017 para 32% em 2021] e da informalidade no trabalho, que alcançou 55%, segundo dados do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos do Equador (INEC).
O que vem pela frente
Ao aplicar o mecanismo da “morte cruzada”, Lasso obriga o Conselho Nacional Eleitoral do Equador (CNE) a convocar novas eleições, que escolherão o presidente e os parlamentares que cumprirão apenas o restante do atual mandato, ou seja, até o primeiro semestre de 2025, quando estão programadas os pleitos regulares.
A autoridade eleitoral terá sete dias para definir a data desse pleito, que deve acontecer dentro dos próximos seis meses.
Até lá, Lasso seguirá governando através de decretos.