A África do Sul realiza eleições gerais nesta quarta-feira (29/05). O futuro do partido de Nelson Mandela está em jogo, após 30 anos no poder.
Desde às 7h da manhã (2h em Brasília), mais de 23 mil locais de votação estão abertos nas nove províncias da África do Sul. Esta é a sétima eleição do país desde 1994, quando – após o fim do regime de segregação racial, o apartheid – Nelson Mandela foi eleito o primeiro presidente negro.
O partido de Mandela, Congresso Nacional Africano (CNA), conquistou naquele ano 62,5% das 400 vagas do Parlamento e se manteve no poder até hoje, com diferentes presidentes. Atualmente representa 57,5% do Legislativo.
Agora, pela primeira vez na história, o CNA corre o risco de receber menos de 50% dos votos e, com isso, perder sua hegemonia política. Este é o reflexo mais claro da insatisfação de boa parte dos que vivem hoje em um dos países mais desiguais do mundo, que enfrenta há cerca de 17 anos uma grave crise energética e teve lideranças políticas no centro de escândalos de corrupção nos últimos anos.
Na África do Sul, o povo vota nos partidos, que indicam quem ocupará cada assento conquistado proporcionalmente no Legislativo. Depois disso, os parlamentares decidem quem governará o país, sendo necessário conseguir no mínimo 201 votos.
Pesquisas indicam que o CNA ainda deve formar a maior bancada, mas, não tendo maioria absoluta no Parlamento, certamente ficará difícil comandar o país sem formar uma coalizão com algum partido. Resta saber qual.
O liberal conservador Aliança Democrática (AD), que representa a segunda maior bancada do Parlamento (21%), concordou em formar uma coalizão com alguns partidos de oposição caso consigam juntos mais de 50% dos votos. Assim, decidirão quem comandará a África do Sul pelos próximos 5 anos, o que é visto como a possibilidade (ainda que remota) de, depois de 30 anos, o país voltar a ter um presidente branco.
Alguns especialistas afirmam que dificilmente o CNA e o AD formariam uma coalizão. Por mais que também tenha políticos negros, o Aliança Democrática ainda é popularmente chamado de “partido de branco” por muitos sul-africanos. Uma opção seria o apoio do radical de esquerda Combatentes pela Liberdade Econômica, que ocupa a terceira maior quantidade de assentos no Legislativo (11%).
Poucos apostam em uma aliança com o partido fundado pelo ex-presidente Jacob Zuma, o uMkhonto weSizwe (MK), que, segundo pesquisas, pode receber cerca de 13% dos votos, basicamente por causa da popularidade de Zuma na província KwaZulu-Natal, o maior colégio eleitoral do país, e do fato dele ser Zulu, o maior grupo étnico sul-africano.
Zuma rompeu com o CNA. Em 2018, ele acabou forçado pelo partido a deixar a presidência do país por ter sido acusado de envolvimento em esquemas de corrupção. Chegou até a ser preso. Durante a campanha deste ano acabou legalmente impedido de ocupar qualquer vaga conquistada pelo partido que fundou.
Etnização
A etnização da política sul-africana chamou atenção da antropóloga Laura Moutinho, da Universidade de São Paulo. “A gente está acostumado a pensar em termos raciais, mas não em termos étnicos. E acho que faz uma grande diferença no jogo político”, ponderou.
A USP enviou um grupo de pesquisadoras para a África do Sul com o objetivo de acompanhar esta eleição. “Tem esse marco dos 30 anos da eleição do Mandela. A gente tem um momento chave para discutir questões relacionadas à democracia. As democracias estão ameaçadas em diferentes partes do mundo. Eu acho que ter um olhar para cá nesse sentido é importante”, explica. “Desde a eleição do Mandela essa é a mais controversa, que tem mais questões em debate. Esse é o ponto de interesse que a gente vem trabalhando,” afirmou a antropóloga que coordena um time de, ao todo, sete pesquisadoras que analisam esta eleição (três delas estão na Cidade do Cabo).
Desde 1999 Laura Moutinho pesquisa a África do Sul, inclusive monitorando a extrema direita. “Me deu um certo arrepio quando estava lendo uma parte do candidato do AD falando ‘você não tem que ter medo do conservadorismo’”, lamentou. Ela destaca que os partidos começaram suas campanhas na província KwaZulu-Natal, onde o AD a encerrou. Para a brasileira “isso é algo interessante para pensar a disputa pelos votos zulus”.
Na visão da sul-africana Gloria Matiwane, “o país vinha bem, mas tudo começou a piorar com Zuma”. A auxiliar de serviços gerais disse que faz questão de votar porque não está feliz com a realidade do país e aponta a corrupção como o maior desafio da África do Sul. “Eu quero mudança, algo diferente”, enfatizou. Mas ao mesmo tempo, afirma que não quer desperdiçar o próprio voto, discurso muito comum de se ouvir por aqui quando o assunto é eleição. Isso significa que muita gente ainda deve acabar votando no CNA, que lidera as pesquisas. “Algo como uma coalizão pode ser bom para o país”, acrescentou Gloria.
Desinteresse dos jovens
Ao todo, 70 partidos apresentaram nomes de quase 15 mil candidatos à Comissão Eleitoral, incluindo os que disputam cargos nacionais, provinciais e regionais. E, pela primeira vez, a eleição tem ainda 11 candidatos independentes. Cada eleitor recebe três cédulas que devem ser depositadas em três urnas diferentes. “Em cada uma delas vou votar em um partido”, acrescentou Glória.
Cerca de 27,8 milhões de eleitores estão registrados para votar este ano. Quase 13 milhões deles tem entre 30 e 49 anos. Pouco mais de 5 milhões nasceu depois da eleição de Nelson Mandela, uma geração que parece cada vez menos interessada em política. Os números deveriam ser maiores, mas cerca de 13 milhões de sul-africanos com mais de 18 anos abriram mão do direito de votar e sequer se registraram, já que o voto aqui não é obrigatório.
Vuyo Tswago e Kaide Robertson votarão pela primeira vez em uma eleição nacional sul-africana. Ambos têm 22 anos e são universitários. Os dois disseram que política não é, sequer, um assunto comum nas rodas de conversas com os amigos.
“Os jovens se sentem desesperançosos hoje em dia aqui. Todas as notícias sobre política são sempre negativas. Mas votar é importante. Eu venho de uma família que tem uma forte convicção sobre a importância de exercer os direitos civis”, disse Vuyo.
Como muitos sul-africanos, ele prefere não falar em que partido(s) pretende votar, mas confessa que um dos maiores desafios atualmente é achar uma legenda que “realmente priorize os cidadãos e não seja tão radical”.
Kaide admite que, assim como muitos da idade dele, não está bem preparado para falar de política, mas não vai abrir mão do direito de votar. Assim como muitos da sua geração, pretende sair do país futuramente. “Eu quero ir viver no exterior e conheço muita gente que quer fazer o mesmo. O próximo governo deve fazer algo para que a gente pense em continuar aqui, mas atualmente há mais oportunidades no exterior, acho que é onde há um futuro mais promissor”, disse.