O Corpo de Generais e Almirantes Aposentados da Defesa Nacional, do Exército, das Armadas e da Força Aérea do Chile enviou uma carta-manifesto ao governo do presidente Gabriel Boric queixando-se dos eventos programados pelo governo que marcam os 50 anos do golpe de 11 de setembro de 1973, que derrubou o presidente socialista eleito democraticamente Salvador Allende.
A carta, enviada no domingo (20/08) e recebida no Palácio de La Moneda, sede da Presidência chilena, na segunda-feira (21/08), diz que os atos que marcam os 50 anos da derrubada de Allende provocam uma “maior divisão” na sociedade, incluindo, para eles, “gerações que não viveram este dramático período de nossa história”. Opera Mundi entrou em contato com a secretaria do grupo de Generais e Almirantes da reserva do Chile, que confirmou a veracidade da carta enviada ao governo de Boric.
Como no Brasil, os militares da reserva podem se expressar politicamente. Muitas vezes, no entanto, a manifestação pública de entidades ligadas aos militares da reserva, como o Clube Militar brasileiro, são compreendidas como pressões de militares da ativa. Assim, a carta endereçada a Boric pode sugerir que os militares estão descontentes com as críticas ao golpismo de 1973 que o governo e a sociedade chilena preparam para as próximas semanas.
O governo Boric planeja vários eventos por conta da data. Inclusive, o Ministério da Cultura defende que a rememoração dos 50 anos seja um espaço para a sociedade chilena “se reunir e refletir sobre a memória, democracia e o futuro”.
Os militares da reserva, porém, afirmam não poder ficar em um “silêncio culposo” diante de tais eventos. Segundo eles, há um ambiente de “agressividade e difamação às forças militares e policiais que efetivamente tiveram participação” no golpe.
Os generais e almirantes aposentados salientam na carta que as forças “não buscaram e nem desejaram” participar da derrubada de Allende em 1973. “Ao observar esses atos e declarações parecem que a apontada quebra institucional foi levada adiante unilateralmente pelas Forças Armadas, esquecendo que suas causas nunca foram geradas no quartel”, afirma o documento.
Endereçada ao presidente Boric, a carta diz ainda esperar que o mandatário consiga “reforçar” a convivência nacional, afirmando que o “ideologismo extremo sempre rechaça, a qualquer evento, qualquer ideia que pretende gerar condições efetivas para ir paulatinamente alcançando maiores níveis de unidade e reconciliação nacional”.
“Estamos convencidos que o ocorrido em 11 de setembro de 1973, com tempo e o juízo desapaixonado da história, o colocará no lugar que o corresponde”, finaliza o documento.
Até o momento da publicação desta reportagem, o presidente Boric não havia se manifestado em relação à carta.
A data dos 50 anos do golpe no Chile também se transformou em um especial de Opera Mundi, que iniciou uma série de reportagens com relatos de brasileiros que viveram o fim do governo Allende e começo da ditadura Augusto Pinochet.
Leia o primeiro relato da série: O golpe no Chile pelo olhar brasileiro – capítulo 1: ‘não queremos sua sociologia aqui’
Leia tradução da carta dos militares chilenos da reserva na íntegra:
Carta aberta ao presidente da República do Chile, Gabriel Boric Font,
Excelentíssimo senhor,
O Corpo de Generais e Almirantes da Reserva da Defesa Nacional, o Centro de Generais da Reserva do Exército, o Corpo de Almirantes da Reserva da Marinha e o Centro de Generais da Reserva da Força Aérea, considerando as múltiplas atividades e expressões de diversas naturezas que o governo vem manifestando a respeito da comemoração dos 50 anos da intervenção militar de 11 de setembro de 1973, tomaram a decisão de enviar esta carta pública, por considerar que a somatória desses atos está provocando uma maior divisão entre nossos compatriotas, envolvendo inclusive gerações que não viveram esse dramático período da nossa história.
A respeito do atual cenário que o país vive, não é nossa intenção qualificar acertos e desacertos dos atuais atores e conglomerados políticos da nossa sociedade, em um ano tão complexo e conjuntural, e de alta sensibilidade comemorativa; porém, não podemos nos manter em um silêncio culposo diante de tanta agressividade e difamação às Forças Armadas e às polícias, que efetivamente tiveram participação – embora não buscada nem desejada – na ruptura institucional de 1973.
Ao observar esses atos e declarações, fica parecendo que a ruptura institucional foi uma ação unilateral das Forças Armadas, e se omite o fato de que suas causas não foram geradas dentro dos quartéis. Não nos aprofundaremos sobre essa questão, pois os fatos que levaram à intervenção militar estão devidamente comprovados por diversa documentação oficial que emanou naquele período, tanto das estruturas do Estado quanto da sociedade civil da época.
Embora conheçamos sua posição sobre o ocorrido, acreditamos que seguir abrindo feridas e cobrando gestos daqueles que já o fizeram em diversas oportunidades – ao contrário de outros atores e setores da sociedade civil – definitivamente não contribui para alcançar a tão necessária coesão nacional.
Como integrantes ativos de nossa sociedade, ainda temos esperanças de que, em sua condição de chefe de Estado, o senhor admita que é vital para o Chile reforçar a convivência nacional, que derive em um maior saneamento da alma da nossa sociedade. Temos a certeza de que o ideologismo extremo sempre rechaçará, de qualquer forma, toda ideia que pretenda gerar condições efetivas para que se possa avançar, paulatinamente, no caminho de alcançar maiores níveis de unidade e reconciliação nacional, já que, suas máximas de verdade unilateral, divisão e ódio, pretendem apenas eternizar essa divisão e nos afastar das questões que nos unem.
Senhor Presidente, desejamos respeitosamente que o senhor tenha sucesso em suas importantes e transcendentais atribuições como chefe de Estado, e que, ao final do seu mandato, possamos observar um país mais unido e idealmente mais reconciliado.
Finalmente, expressamos que estamos convencidos de que os acontecimentos de 11 de setembro de 1973, com o tempo e o julgamento a partir do distanciamento histórico, será colocado em seu devido lugar.
Saúdam atentamente:
Álvaro Guzmán Valenzuela, presidente do Corpo de Generais e Almirantes da Reserva da Defesa Nacional
José Gaete Paredes, presidente do Centro de Generais da Reserva do Exército
José Miguel Romero Aguirre, presidente do Corpo de Almirantes da Reserva da Marinha
Osvaldo Sarabia Vilches, presidente do Centro de Generais da Reserva da Força Aérea
(*) Reportagem com colaboração de Victor Farinelli.