Pelo senso comum, mesmo em regiões LGBT friendly, como o entorno da Avenida Paulista, na região central de São Paulo, expressões públicas de homoafetividade já não são algo lá muito fácil. Imagine, então, em bairros mais afastados. Mas jovens da periferia paulistana vêm rompendo essa barreira com vontade de afirmar sua existência, sua identidade e sexualidade em praças, bailes e no cotidiano de suas comunidades. Em março, o Festival Periferia Trans, na zona sul, reuniu coletivos de teatro, dança e movimentos para discutir como é ser lésbica, gay, bissexual e transexual (LGBT) nas bordas da cidade.
Para o ator Bruno César Lopes, organizador do festival, tratar a questão LGBT do ponto de vista da periferia é fundamental para descentralizar políticas públicas. “A gente sempre tem de ir para o centro para lutar as nossas lutas. Mas a juventude está se colocando e se apropriando dos espaços”, afirma.
Foi por acaso que a reportagem encontrou, numa tarde de segunda-feira, o casal V. C. e R. A. aos beijos em uma praça no Parque Linear Cantinho do Céu Lago Azul, no extremo sul da capital paulista. Elas são estudantes, têm 17 anos e contam que entendem a sua orientação sexual desde os 13. Sempre namoraram no bairro – “e muito”. Conhecem a Rua Augusta, reduto LGBT na região central de São Paulo, mas vão pouco até lá, em função da distância e por não achar necessário. “Dá para ser feliz aqui”, afirma uma das meninas.
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Cerca de 1.700 domicílios à beira da represa Billings foram removidos para a criação do Parque Linear Cantinho do Céu Lago Azul, um dos primeiros do programa Mananciais, plano de proteção e recuperação ambiental. No entanto, milhares de pessoas ainda vivem na área em condições precárias. Do píer é possível ver, na margem oposta, o Cantinho do Céu, repleto de ruas sem asfaltamento e construções inacabadas. Com a escassez de chuvas, a água recuou e no solo cresceu pasto que alimenta gado. No dia em que a reportagem esteve no bairro, um garoto cuidava de um pequeno rebanho, montado em um cavalo branco.
Vinícius Linhares, 19 anos, se orgulha da beleza do local. Com suas roupas e seu jeito, poderia ser visto em qualquer dos coletivos que atuam no Parque Augusta, no centro. Enquanto caminha, o orientador comunitário cumprimenta várias pessoas. Quando se trata de rapazes bonitos, o aceno é seguido de comentário discreto sobre a gostosura ou beleza de quem passou.
Contando a história do parque, de uma feira que funciona 24 horas, vendendo de tudo, tudo mesmo, na entrada do Cantinho do Céu, ele cita o nome dos grafiteiros que botam cores nas paredes. No caminho, encontra um amigo que merece cumprimento mais efusivo, cheio de gírias e vocativos do universo gay.
Ian Ribeiro, 21 anos, é negro, veste bermuda estampada, camisa xadrez, boné de aba reta – como um “menininho”, define. Crianças nadam na represa, rapazes mais velhos conversam e fumam. Vinícius, filho de uma faxineira que o criou sozinha, e Ian, pais evangélicos, falam sobre suas percepções e experiências como homossexuais sem restrições no tom da voz ou nos gestos.
Nem proibição, nem proteção
O Brasil tem uma das taxas de homicídio com motivação homofóbica mais altas do mundo. Em 2014, foram 317 homicídios e nove suicídios, segundo o Grupo Gay da Bahia, que faz o levantamento baseado em notícias publicadas em jornais. Não há lei que proíba a homossexualidade, mas também nenhuma que proteja homossexuais, bissexuais e pessoas transgênero por crimes de ódio. Por isso, não há estatísticas oficiais. Os ataques em São Paulo que ganham visibilidade ocorrem justamente nas regiões consideradas friendly, amigáveis, como Rua Frei Caneca e o Largo do Arouche. Mas existem também na periferia. “Às vezes, quando a gente está sentado em algum lugar e querem sentar, jogam pedras na gente”, conta Ian. Mas ele relativiza: “Nada que não aconteceria em outro lugar”.
Sem precisar buscar o anonimato nas multidões e pensões do centro, os jovens correm atrás de seus sonhos sem ter de passar por uma ruptura forçada, como deixar a casa dos pais muito cedo e procurar abrigo em regiões supostamente mais tolerantes, mas com custo de vida muito maior. “O bom de morar aqui é que eu consigo comprar roupa e maquiagem muito mais barato do que no centro”, avalia Ian, auxiliar de cabeleireiro que sonha ser personal stylist. “Às vezes coloco uma roupa, faço uma maquiagem, e as pessoas nem imaginam que comprei daqui.”
Os entrevistados lembram com temor do caso do jovem agredido com uma lâmpada na Avenida Paulista, em 2010. “Sempre que estou lá, fico olhando para frente, para trás, para os lados”, diz Alex Leandro, 21 anos, figurinista e ator da Identidade Culta e morador do Grajaú. No Festival Periferia Trans, atua na peça Como Sempre Somos Motivo de Chacota, no papel de uma travesti.
Para fazer a peça, ele fez laboratório em um ponto de prostituição de transexuais no Jardim Prainha, também na zona sul. A peça já foi encenada em Pinheiros, na zona oeste, e remontada no Grajaú e no Capão Redondo. Em uma cena, a personagem fica nua na rua. “Quando eu fazia na Rua Teodoro Sampaio (Pinheiros), pensava: ‘Nossa, esse lugar é muito perigoso’”, conta o ator sobre uma tensão que não sentiu nas apresentações do festival.
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Para o jornalista Marcelo Hailer, de 33 anos, morador da Vila Santa Clara, em Sapopemba, zona leste, boa parte da ideia de que em bairros fora do centro a homofobia é pior do que em bairros mais ricos tem a ver com uma percepção classista da cidade. “Todos os espaços públicos são pensados para a heterossexualidade. A gente tem muito a ideia de classes delimitada por bairro. Então, é falsa a noção de que Jardins e centro sejam mais tolerantes”, pondera. “Saí de mãos dadas aqui, já fui ao bar tomar cerveja com namorado. E nunca sofri nada. Pode ser que tenha gente que sofreu em seu bairro, mas a maioria que eu conheço passou por isso no centro. Eu descobri o que era homofobia de verdade fora daqui.”
Além de sua experiência pessoal, Marcelo cita um mapeamento feito em 2010 pela prefeitura com denúncias de homofobia. O resultado mostrou que 50% dos casos de violência tinham acontecido no centro expandido, ante 19% na zona leste, 16% na zona sul, 9% na norte e 6% na oeste. Em 2012, ao trocar beijos com um rapaz em uma lanchonete em frente ao Centro Cultural Vergueiro, supostamente um território gay-friendly, Marcelo foi expulso. “O cara começou a bater no balcão com uma faca, falando pra gente sair de lá”, lembra. A ação discriminatória teve como reação um “beijaço” no local.
Marcelo acredita que parte da tolerância que vivencia tem a ver com os laços com o bairro, onde viveu a maior parte da vida, e com a ação pedagógica de seus gestos. “Muitas pessoas vêm falar que é isso mesmo, tem que viver. Estar na rua de mãos dadas, trocar carícias, é um ato político. E uma ação de ocupar o espaço público. Parece uma coisa boba, mas não é. Porque tudo está organizado para a heteronormatividade.”
Alex usa saia e Ian eventualmente sai de casa montado como drag queen. Mas nenhum dos dois beijou outro menino fora dos contraditórios “lugares seguros” da região central. “Não é por medo. Pelo contrário, acho mais difícil apanhar aqui. Não é porque não quero me manchar com as pessoas. Mas não sei, é uma questão minha, é o meu lugar. Não me sinto à vontade”, afirma Ian.
Segundo Vinícius, a questão LGBT não influencia diretamente a do transporte, da moradia, mas o contrário, sim. “A periferia tem suas maravilhas, mas também muita opressão, porque as relações são mediadas pelo dinheiro. Mais do que o centro, ela é cruel. As pessoas vão lá para serem incluídas no que há de mais bonito. Mas é aqui que ela mora, paga as contas, olha para o vizinho, quando estiver bem e quando estiver mal. Na periferia é onde quero evoluir e mostrar minha evolução.”
Nicolly Bolina, 20 anos, vê uma “falta de educação do homem da favela”. “No centro, as pessoas são mais evoluídas. Sabem tratar a travesti. Chamam sempre por ‘ela’. Não é que nem aqui. Uma vez eu estava andando na rua e me deram tanta paulada que desmaiei”, conta. “As pessoas que moram em locais chiques têm mais educação.”
Desde os 12 anos, todos puderam notar o que Nicolly sempre teve certeza, que era uma menina, quando resolveu comemorar o Natal vestida com roupas femininas. O pai a espancou. A mãe se separou e decidiu se mudar com a filha de Cotia, cidade da região metropolitana, para o bairro de Prainha, na zona sul da capital, pois sabia que lá havia outras pessoas transexuais, que poderiam ajudá-la a entender o que estava acontecendo. Desde os 13, ela tomava hormônios com a ajuda da mãe.
Hoje com 20 anos, ela ainda não conseguiu garantir o nome social em seus documentos, mas pretende voltar a estudar ainda este ano para realizar o sonho de ser advogada. Abandonou os estudos aos 17, na 5ª série, e passou a se prostituir. “Como era muito feminina, não sofria muito preconceito dos outros alunos. Mas vários professores me chamavam pelo nome da lista, mesmo eu pedindo para me chamarem de Nicolly”, conta.
Há um ano, ela e um cliente casado se apaixonaram. Depois de um ultimato de Nicolly, ele se separou, e os dois foram viver juntos em uma casa pequena, quarto e a sala divididos por um armário. “Ele tem uma filha de 9 anos, a gente sai junto e tudo. Acho que ela não percebeu ainda. A família dele me aceita, até dizem que eu sou mais bonita que a ex-mulher dele. A gente sai de mão dada, vai ao mercado”.
Ela atribuiu a aceitação a sua aparência feminina. Manter o visual é um dos motivos para continuar na prostituição. No dia seguinte à conversa com a reportagem, Nicolly implantou próteses de silicone nas mamas em uma clínica, ao custo de R$ 3.500. Pouco tempo antes, havia colocado silicone industrial nas nádegas. “A gente vicia nisso, sabe. Porque ganha 50 reais rapidinho ali, em dez minutos. Eu já tive um trabalho ‘digno’, no Habib’s, mas não deu certo por causa disso. E também porque é gostoso, depois de passar por tanta humilhação, ver aquela pessoa que te desprezou na rua, querer pagar para ficar com você.”
Matéria original publicada na Revista do Brasil.