Saiba o que mais foi publicado no Dossiê #07: Educação Sem Fronteiras
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No início do século 21, a educação encontra-se em crise e sob contestação. A instabilidade econômica do capitalismo — refletida na desaceleração da tendência de crescimento econômico desde meados dos anos 1970, no agravamento das crises financeiras e no recrudescimento de políticas neoliberais draconianas — tem comprometido ainda mais um sistema educacional capitalista já cercado de problemas.
Nos Estados Unidos, o ataque à reforma escolar por parte de planejadores corporativos neoliberais, instituições privadas, lobby de grupos reacionários, estrategistas do governo dos EUA e elites conservadoras tem levado a uma intensa investida contra professores, sindicatos de trabalhadores da educação, escolas e os próprios estudantes. O objetivo é recriar os privilégios dos poderosos forjando uma geração de técnicos e seguidores passivos, disciplinando as classes mais baixas para que elas aceitem o seu lugar na matriz.
O conflito na agenda dos poderosos para as escolas é cada vez mais evidente. Temos, de um lado, privatizações, expectativas drasticamente reduzidas de estudantes e famílias, demonização dos professores, políticas de “tolerância zero” para vigilância e controle e o estreitamento da definição de ensino como instrução e treinamento profissional, ou seja, um produto a ser comprado e vendido no mercado. Do outro lado, temos uma crescente reação baseada no princípio do valor incalculável de todo e qualquer ser humano e de que a vida em uma sociedade livre e justa deve ser orientada e alimentada por uma ideia profundamente radical: o pleno desenvolvimento de todos os seres humanos — sem distinção de raça ou etnia, origem ou experiência de vida, identidade de gênero, aptidão ou deficiência – é condição necessária para o pleno desenvolvimento de cada indivíduo.
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Camisa de força
A metáfora neoliberal dos ricos e poderosos coloca as escolas como empresas, professores como funcionários, estudantes como produtos e commodities. Também leva à ideia de que o fechamento de escolas e a privatização do espaço público são acontecimentos naturais, que regimes padronizados e intransigentes de teste e punição são razoáveis e que tolerância zero é uma representação sensata de justiça. Isso é o que os fanáticos chamam de “reforma”.
Nessa camisa de força metafórica, o ensino escolar é uma mercadoria como botas e martelos e está sujeito ao mesmo planejamento corporativo. Mas diferentemente de botas e martelos, cujo valor é inerentemente satisfatório e pode ser compreendido diretamente, o valor do ensino escolar é indefinível e indireto. Seu valor, garantem os “reformistas”, foi calculado em algum outro lugar por pessoas sábias e talentosas, e esses mestres sabem mais do que ninguém o que é melhor para as crianças e para o mundo. “Tome esse remédio”, os estudantes escutam repetidamente, “é bom para você”. Recuse a pílula amarga e vá para o fundo da sala — onde estão reunidos todos os outros perdedores.
Escolas para obediência e conformidade são caracterizadas por passividade e fatalismo e insufladas com anti-intelectualismo e irrelevância. Elas apreciam pequenas tecnologias de controle e normatização — esquemas elaborados para lidar com multidões, obscuros sistemas de regras e disciplina, exaustiva elaboração de programas e horários, mecanismos de divisão dos alunos entre vencedores e perdedores através de testes, punições, notas, avaliações e julgamentos. Tudo isso levando a uma armadilha bem conhecida, a construção de uma intricada hierarquia – um lugar para cada um e cada um em seu lugar. Nas escolas, como elas são hoje — e como estão cada vez mais se tornando —, conhecer e aceitar o seu posto é a única lição que os alunos precisam aprender.
Momento ensinável
Temos de resistir às maneiras como abordagens críticas ao aprendizado estão sendo apropriadas, domesticadas e subvertidas para servir aos propósitos do ensino dirigido pelas elites. Os professores são informados de que estão praticando uma aula “freiriana” quando permitem que os estudantes escolham o tema da pesquisa — algo muito distante do projeto de conscientização e interpretação do mundo que o educador Paulo Freire praticava. O estudo do aprendizado e do ensino contextualizado, estruturado para fortalecer as vozes e experiências da classe trabalhadora, está sendo assimilado por consultores de treinamento corporativo. O processo crítico de alternância de códigos, que reconhece a igual importância de discursos diversos e os modos como as pessoas transitam por diferentes estilos de comunicação de acordo com o interlocutor, está se transformando em um ardil sofisticado para censurar crianças e adolescentes negros e pertencentes a outras minorias e fazer com que eles se submetam à narrativa dominante. Iniciativas com novas mídias e expressão artística nas cidades, que encorajam e inspiram os jovens, estão sendo inundadas por acadêmicos e financiadores que — sempre em busca de autenticidade — tentam dirigir seus sucessos de volta para o processo normativo do ensino imperialista.
Educadores verdadeiramente orientados em direção à justiça, à libertação e à iluminação como forças vitais e poderosas aspirações focam seus esforços não na produção de coisas, mas na produção de seres humanos plenamente desenvolvidos, capazes de controlar e transformar suas próprias vidas; cidadãos que possam participar ativamente da vida pública; indivíduos que podem abrir os próprios olhos e despertar a si mesmos e aos outros, pensando e agindo eticamente em um mundo complexo e em constante mutação. Esse tipo de ensino encoraja os estudantes a exercitar a iniciativa e a imaginação, a capacidade de discernir e interrogar constantemente o mundo, a sabedoria para identificar os obstáculos à sua humanidade plena e à humanidade plena de seus semelhantes, e a coragem para agir de acordo com as demandas do conhecimento.
Ensinar, nesse contexto de instabilidade econômica e reação política, é ao mesmo tempo um desafio e uma dádiva, já que esse momento representa o que os educadores sempre chamaram de “um momento ensinável”. “Momentos ensináveis” são tempos de desequilíbrio e deslocamento, tempos em que planos de estudo são questionados e as novidades podem entrar, tempos em que o previsível e o lugar comum são reconhecidos como inadequados e ventos frescos e surpreendentes podem soprar, tanto para os professores como para os estudantes. O “momento ensinável” alinha-se a um tipo de pedagogia que não conhece as respostas e está disposta a improvisar com o incompleto, o incerto e o imprevisível.
Precisamos de escolas nas quais a educação seja construída como um direito humano fundamental, orientada para o pleno desenvolvimento da personalidade e a reconstrução da sociedade baseada em princípios básicos de igualdade, justiça e reconhecimento.
Essas não são as escolas que temos hoje. Mas isso não significa que nós podemos simplesmente abandoná-las. Em face da privatização implacável que vem sendo aplicada ao ensino, temos de nos esforçar tanto para defender a verdadeira educação pública como para fazer das escolas lugares de emancipação, voltadas para o livre desenvolvimento de indivíduos infinitamente valiosos.
Tradução por Carolina de Assis
* Publicado originalmente na revista Monthly Review
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