Ana Paula Hirama / Flickr
Ponte Presidente Costa e Silva, mais conhecida como Ponte Rio-Niterói, liga as duas cidades fluminenses e foi construída entre 1969 e 1974
Camargo Corrêa, Odebrecht, Andrade Gutierrez, Mendes Júnior, OAS. Os nomes que compõem o seleto grupo das grandes empresas do setor de construção civil no Brasil são conhecidos há décadas pela população e já fazem parte do imaginário nacional. Arrastadas pelas denúncias de corrupção na Petrobras, com alguns de seus executivos presos desde o ano passado, essas e outras empreiteiras vêm sendo associadas pela mídia tradicional aos “desmandos” do atual governo, mas o fato é que pela primeira vez terão de prestar contas à Justiça sobre sua forma de agir e fazer negócios. Uma forma de agir que remonta ao governo de Juscelino Kubitschek e, sobretudo, à ditadura imposta aos brasileiros entre 1964 e 1985.
A gênese da estreita ligação entre essas grandes empresas e o poder no Brasil é contada e analisada no livro “Estranhas Catedrais – as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar”, escrito pelo professor Pedro Campos, diretor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
O momento crucial dessa relação, segundo o autor, acontece em dezembro de 1969, quando, já no governo Médici, é publicado o Decreto 64.345, assinado pelo general-presidente anterior, Costa e Silva, que transforma em reserva de mercado para um grupo de empreiteiras brasileiras os grandes projetos de infraestrutura levados a cabo naquele período de “milagre econômico”. Desde então, as gigantes da construção civil no país vivem um longo e próspero período de expansão de atividades e crescimento dos lucros. Período que agora pode estar com os seus dias contados.
Leia a seguir trechos da entrevista com Pedro Campos.
A relação das grandes empreiteiras brasileiras com o poder nasce com o Decreto 64.345, de 1969? Como era a presença delas no mercado antes da ditadura?
Esse decreto é bem significativo do processo de fechamento imposto pela ditadura, é expedido com o Congresso fechado, um pouco depois do AI-5. É fruto e expressão do poder já organizado desses empresários e, ao mesmo tempo, ajuda a promover e fortalecer todo o ramo da construção civil no Brasil. Na verdade, as empreiteiras brasileiras em 1969 já eram muito poderosas. Elas tiveram participação no golpe de Estado que impôs a ditadura. Cresceram muito antes disso, ainda no período JK (1956-1961). Além disso, há o início do chamado milagre econômico brasileiro, e é o momento em que elas vão fazer vários empreendimentos e vão enriquecer e se fortalecer muito. O decreto vai facilitar esse trâmite ao impedir a presença de empreiteiras estrangeiras atuando no país. Pode ser lido de duas formas. Primeiro, como fruto do poder, de uma demanda do setor. Os empresários, ao longo do primeiro governo da ditadura, de Castello Branco, fizeram uma série de críticas em relação às políticas de governo que incorriam na contratação de empresas estrangeiras nos setores de engenharia, de projetos de obra e tudo o mais. Esse conjunto de medidas vai ser muito criticado, muito atacado pelos empresários da engenharia, que organizam uma campanha nacional, que eles chamam de “defesa da engenharia brasileira”.
Medidas como a reserva de mercado, que acabou acontecendo, foram clamadas por essa campanha. Não é uma ação do governo, uma ação do Executivo à revelia da sociedade civil. Pelo contrário, é uma queixa, uma demanda que vem desses empresários de maneira organizada, em aparelhos da sociedade civil, em organismos de empresários, sindicatos e associações, e que acaba, no meio da ditadura, de maneira bastante arbitrária e autoritária, sem passar pelo Congresso, em um decreto do Executivo para atender às demandas desse setor. O que só mostra que esses empresários estavam bastante coadunados com a ditadura, bem relacionados com a ditadura nos seus ímpetos mais autoritários. Conseguem um grande rol de obras ao longo do período do milagre, na década de 1970, e têm facilitadas as práticas cartelistas porque, se não há empresas estrangeiras concorrendo, é muito mais fácil acertar internamente como vão ser divididas as obras.
Como e com quais empreiteiras se formaram os primeiros cartéis no setor de infraestrutura? Existia alguma empreiteira “líder”?
Não existe um único cartel no país. Na verdade, existem cartéis. Principalmente em relação aos chamados órgãos contratantes. Existe, por exemplo, o cartel das empresas de obras rodoviárias que atuam junto ao Departamento Nacional de Estradas de Rodagem. Existe um cartel das empreiteiras fluminenses que atuam junto à Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos, no Rio de Janeiro) e à Secretaria de Obras do Estado. Existe o cartel das empreiteiras paulistas que atuam junto ao Departamento de Estradas de Rodagem de São Paulo. E por aí vai… Outro cartel, que agora foi à mostra, é formado pelas empreiteiras que atuam na Petrobras. Esse cartel não é de hoje, não necessariamente composto pelas mesmas empresas. Desde a década de 50, quando a Petrobras é fundada, um conjunto de empresas começa a se especializar em prestar serviços para a Petrobras e isso tem tido continuidade – é óbvio que com arranjos aqui e acolá – desde então. Não existe um único cartel, existe um conjunto de práticas cartelistas no setor de obras públicas do país, o que foi propiciado, por exemplo, por esse decreto de 1969 que impede a participação e entrada de empresas estrangeiras em obras públicas contratadas por agências do Estado no Brasil.
Quem dominava o mercado brasileiro? Não existiam grandes obras antes da era JK?
O mercado de obras públicas no Brasil é complexo. É impulsionado no pós-guerra, e realmente tem um ímpeto muito grande no período JK. É um tipo específico, são principalmente as obras rodoviárias, as obras de estradas. O governo JK foi muito conhecido por ter feito realmente empreendimentos rodoviários significativos. Ele tinha uma previsão de construção de rodovias que foi superada e realmente teve um nível impressionante de construção e também de pavimentação e reformas de estradas. Existem outros tipos mais complexos do que a construção de estradas, como as de barragens, hidrelétricas, de usinas nucleares, metrôs e tudo o mais. Essas mais complexas, em geral, foram sendo controladas por experiência técnica pelas empreiteiras brasileiras ao longo do período seguinte, década de 60/70, obviamente auxiliadas ou por políticas favoráveis que impediam a participação de estrangeiras ou por medidas como obrigar uma empreiteira estrangeira a se associar a uma empreiteira nacional para fazer uma obra. Um caso clássico é o da maior construtora de hidrelétricas do Brasil, a Camargo Corrêa, que faz suas primeiras obras em São Paulo, com as empresas que depois foram reunidas na Cesp (Companhia Energética de São Paulo) – colada com uma empreiteira norueguesa, a Norendel do Brasil. Com ela, a Camargo Corrêa aprendeu tudo para a construção de barragens e, obviamente, depois foi desenvolvendo melhor todo esse know-how. A partir de medidas como essa as empreiteiras brasileiras vão criando um conjunto de experiências que as capacita a fazer obras similares, no Brasil e no exterior.
O acesso ao mercado estrangeiro pode ser considerado outro salto para essas empreiteiras? Houve um momento, sobretudo nos anos 1980, em que muito se falava na presença das empreiteiras brasileiras no Oriente Médio ou na África.
A ditadura é o momento em que há o maior volume histórico de obras no país, de obras rodoviárias, de energia, de transporte, realmente sem igual em período anterior e até posterior. Foram muitas obras, tem tudo a ver com uma ditadura, né? Todas as demandas sociais na forma de saúde, educação, estavam cerceadas, então o governo podia com seus recursos fazer obras sem tanto impacto social. E as empreiteiras, mesmo nesse período de bonança interna, vão para fora. Justamente pelo porte que adquirem e pela experiência técnica que vão obter, elas se capacitam a poder atuar no exterior. A Mendes Júnior é um caso clássico. Ela foi desbravar o mercado iraquiano e acabou se dando mal no final das contas, mas fez obras grandiosas no Iraque e no Oriente Médio em geral, África, América do Sul, e estão até hoje com obras significativas nesses lugares.
Há também a conhecida presença da Odebrecht em Angola…
A Odebrecht é a primeira empresa a chegar em Angola, em 1980, para fazer uma hidrelétrica em associação com a União Soviética. Ela chega ao país para fazer a hidrelétrica de Capanda e tem uma presença hoje em Angola que é um negócio impressionante de grande. A Odebrecht é dona de uma rede de supermercados, gere a hidrelétrica, fornece água para a capital do país. É a grande multinacional hoje da engenharia brasileira, presente em diversos continentes, tem mais de 500 contratos no exterior… É na ditadura que essas empresas passam a ser impulsionadas e incentivadas a atuar no exterior, inclusive com incentivo do governo, com isenções fiscais, com financiamento público, o que teve continuidade no período posterior e até se fortaleceu ultimamente, no governo Lula, com o crédito do BNDES para a atuação fora do país.
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Seu livro cita o parentesco de um dos fundadores da Camargo Corrêa com o então governador de São Paulo, Adhemar de Barros, como exemplo de acesso privilegiado às autoridades e ao núcleo da ditadura. Isso ocorria com outras empresas? De que forma?
É muito comum haver uma relação, não necessariamente de parentesco, mas de proximidade e de conhecimento entre controladores dessas empresas com agentes públicos, agentes políticos importantes e agentes obviamente também da ditadura. Por exemplo, o caso da Camargo Corrêa é bastante explícito. A empreiteira vai ser fundada no período do governo Adhemar de Barros no estado de São Paulo. O cunhado, o parente do Adhemar é o Sylvio Corrêa, que vem a ser na época um dos controladores da empresa. O Sebastião Camargo tinha uma parte e o Sylvio tinha outra, depois o Sebastião compra a parte do Sylvio… A Camargo Corrêa se caracteriza na sua história, até um período recente, apesar de ser uma empreiteira de porte nacional com atuação no exterior e tudo o mais, por ter uma concentração de atividades muito forte em São Paulo. Por mais que ali tivesse ligação pessoal de um dos controladores com uma figura política importante, ela não restringiu suas ações à figura do Adhemar de Barros e seus afilhados políticos. Pelo contrário, interessante notar isso, essas empreiteiras não atuam junto a governo x ou y. Eles próprios falam, é explícito isso, que atuam junto ao aparelho de Estado, às agências de Estado. A Camargo Corrêa – entra governo, sai governo em São Paulo – tinha o controle e continuava tendo uma presença muito forte nos setores de energia, transportes e obras públicas. E, mesmo quando o governo que era oposição ao anterior entra, ela não perde poder com isso. Jânio Quadros vinha da oposição aos grupos anteriores, mas a Camargo Corrêa continua bastante presente e consegue obras e contratos em seu governo.
Sempre próximas ao Estado.
É interessante notar a presença das empreiteiras junto ao aparelho de Estado. Essas empreiteiras estão organizadas, reunidas em organismos da sociedade civil. Em São Paulo, por exemplo, desde 1947 existe uma Associação Paulista de Empresários de Obras Públicas, colada com as agências que contratam obras, o DER, as agências do setor de energia, entre outras. Eles têm esse acesso ao Estado via essas agências. No caso de São Paulo, a grande líder do setor era a Camargo Corrêa. Outro exemplo significativo é a OAS. Um dos sócios da empresa é o César Mata Pires, genro do Antônio Carlos Magalhães. Em 1975, o ACM vai para a presidência da Eletrobras e o César Mata Pires funda a OAS. O ACM é indiretamente proprietário de uma empreiteira, né? Isso não quer dizer que ela se restrinja a, como seu codinome, “Obras Arranjadas pelo Sogro”. A OAS acaba virando muito maior que isso. Não está só na Bahia, hoje controla o Metrô e a Linha Amarela no Rio de Janeiro, está em todo o Brasil, está no exterior. Tem um modus operandi de agir sobre o Estado que os capacita a não ficar presos a certas figuras políticas. As grandes empreiteiras souberam fazer isso. Outras realmente ficaram estigmatizadas pelas relações políticas com certas figuras. É o caso da Rabello, que era muito ligada ao governo JK e, ao contrário da Andrade Gutierrez, que também tinha uma ligação muito forte com o governo JK, foi de certa forma perseguida, perdeu várias obras durante a ditadura, foi para o exterior e acabou depois indo à falência.
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Usina Hidrelétrica de Itaipu, construída por Brasil e Paraguai entre 1975 e 1982
A Delta vive uma situação semelhante nos dias de hoje…
A Delta tinha toda uma relação com o PMDB, explícita e notória. Fazia obras para os governos do PMDB no Brasil inteiro, com destaque para o Rio de Janeiro. Mas era um peixe pequeno, que foi pego em uma operação da Polícia Federal e se tornou insolvente. Eu tenho dúvidas se empresas do porte de Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez terão o mesmo fim. Eu tendo a ser cético em relação a isso, porque elas estão no mundo todo, são concessionárias de serviços públicos, têm braços em outros setores da economia. Podem fazer ameaças como parar o Maracanã ou parar o aeroporto do Galeão. Seus empreendimentos são alastrados e enraizados na economia brasileira.
As empreiteiras colaboraram com ações de repressão levadas a cabo pelos agentes da ditadura? É verdade que financiaram a Operação Bandeirante?
Esse é um ramo onde é difícil obter informação. Através do Elio Gaspari e do documentário “Cidadão Boilesen”, eu tenho a informação de que a Camargo Corrêa não só contribuiu para a Operação Bandeirante como era uma das principais colaboradoras da repressão política financiada e auxiliada pelo empresariado paulista para perseguir, reprimir, torturar e assassinar os membros da resistência armada à ditadura. Isso pode ser maior, não tenho informações se outras empreiteiras participaram desse tipo de iniciativa. Mas o elogio da ditadura era generalizado no setor. Várias empresas eram muito elogiosas, nas entrevistas de seus dirigentes, à ditadura civil-militar. E, é claro, ali havia um cenário ideal para elas poderem se desenvolver. Os sindicatos estavam amordaçados, toda a fiscalização da segurança do trabalhador e das condições de trabalho nos canteiros era bastante limitada. Não à toa, o Brasil se tornou recordista em acidentes de trabalho naquela época, e o setor que mais tinha acidentes era a construção civil, morreu muita gente nas grandes e pequenas obras da ditadura. Além disso, eles tinham várias isenções e políticas favoráveis, todo um orçamento direcionado especialmente para investimentos em obras de infraestrutura em um volume inédito na história brasileira.
Como se deu a relação das grandes empreiteiras com o Poder Judiciário desde a ditadura?
Na ditadura, em função das próprias características do regime, a atuação das empreiteiras em direção ao Poder Judiciário e ao Poder Legislativo era muito reduzida. Tivemos na época uma hipertrofia do Poder Executivo em detrimento dos outros poderes. É o caso dos atos institucionais, atos do Executivo que têm valor de lei. O Legislativo é fechado e o Judiciário tem seus poderes limitados, de modo que as empreiteiras pouco vão em direção ao Judiciário, até porque não era ali que elas resolviam suas pendências. Suas ações durante o regime eram mais direcionadas ao Executivo.
Com o processo de abertura, essas empreiteiras, de maneira esperta e dinâmica, vão procurar se adequar às novas regras e normas institucionais. Assim que o Congresso começa a retomar poder, assim que o PMDB começa a ganhar força dentro da Câmara e do Senado, elas passam a endereçar suas ações ao Legislativo, percebendo que ali havia um ator novo que teria um poder maior que antes. Aconteceu da mesma forma em relação ao Judiciário. Quando elas veem que algumas questões não serão mais decididas nos gabinetes do presidente da República, começam também a endereçar suas ações ao Judiciário e aos juízes, com um conjunto de advogados bastante forte para assessorá-las. Com a retomada dos poderes republicanos – e um marco importante é a Constituição de 1988 –, precisaram ter uma ação mais forte junto ao Judiciário e ao Legislativo.
Quando a gente passa a ter um regime não fechado, não ditatorial, com imprensa, Ministério Público e Polícia Federal funcionando de maneira mais livre, vêm à mostra algumas práticas que essas empresas desenvolvem, como pagamento de propina ou combinação de resultado em licitação. Vão precisar agora de uma assessoria jurídica bastante grande, porque estão agindo de forma ilegal. Se, durante a ditadura, a gente não tem muitas informações sobre essas práticas – embora se saiba, segundo denúncias, que elas ocorriam de maneira deliberada –, em um regime onde isso pode ser denunciado as empreiteiras terão de se instrumentalizar para poder se defender.
Entrevista originalmente publicada na Revista do Brasil.