“Lugar de fala” virou uma ferramenta de exclusão. “Ter lugar de fala” é um bilhete de acesso, numa leitura literal da metáfora: é ter assento numa assembleia exclusiva. Quem “não tem lugar de fala” não tem assento, logo deve ser expulso, isto é, se calar.
Mas a ideia de lugar de fala remetia ao entendimento de que todo discurso é socialmente posicionado. Em oposição a compreensões racionalistas, que julgam que os discursos devem ser avaliados por seus argumentos abstratos, a ideia de lugar de fala indicava que a identidade do falante nunca é irrelevante. As posições socialmente estruturadas geram perspectivas que informam os discursos. Por isso, independentemente de seus valores, ideais ou simpatias, mulheres e homens, negros e brancos, trabalhadores e patrões, gays e heteros, vão manifestar visões diferentes de mundo.
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Isso é um alerta que visa produzir uma leitura menos ingênua e mais informada de todos os discursos presentes no mundo social. Não é um veto. Nem as percepções que sustentam um privilégio epistêmico dos grupos dominados, como as standpoint theories dos anos 1970, creem que da experiência vivida deriva automaticamente a capacidade de entendê-la e de interpretá-la de forma crítica ou que se deve estabelecer uma reserva de mercado no debate sobre o mundo.
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Paulo Amoreira/Flickr/CC
Para professor da UnB, lugar de fala virou instrumento de exclusão
O ponto não é proibir que alguns falem sobre determinados assuntos. Nem dar a outros uma autoridade ilimitada porque ancorada numa vivência singular. O ponto é sempre levar em conta de onde partem os discursos, entender que eles externam uma perspectiva situada, incluir esse elemento na apreciação que fazemos deles. O integrante de um grupo dominado tem uma vivência que permite (potencialmente) que seu discurso traduza um conhecimento prático que alguém externo ao grupo não tem como alcançar. Isso é muito relevante. Mas não faz dele um oráculo, nem reduz o outro ao silêncio.
Transformado em veto, em arma de ataque em batalhas identitárias cada vez mais centradas em si mesmas, o “lugar de fala” serve para obstruir as articulações entre grupos dominados e afastar, até mesmo pintar com as cores do inimigo, aqueles que poderiam ser seus aliados.
(*) Luis Felipe Miguel é professor titular do Instituto de Ciência Política da UnB (Universidade de Brasília) e coordenador do Demodê (Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades). Graduado em Ciência Social pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), mestre em Ciência Política pela UnB e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), é um dos organizadores do livro Aborto e Democracia.
(**) Este texto foi publicado originalmente no perfil de Luis Felipe Miguel no Facebook, e reproduzido pelo Painel Acadêmico