Há 50 anos, exatamente nessa marca, no Lincoln Memorial, Martin Luther King declinava o “Eu tenho um sonho”
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Martin Luther King discursou pelo menos 350 vezes no ano de 1963, mas apenas um entrou para a história: o de 28 de agosto. Naquele dia, a Marcha sobre Washington levou à capital do país 250 mil pessoas. Aglomerada, a multidão ouviu e aplaudiu uma dezena de políticos, artistas e ativistas pelos direitos civis que subiram ao púlpito, mas apenas um orador é lembrado até hoje. Durante os pouco mais de 15 minutos em que discursou, o pastor batista Martin Luther King pronunciou 1.660 palavras, mas apenas uma frase permanece viva e eternizada meio século após ter ganhado os norte-americanos e suas leis segregacionistas: “I have a dream”.
Muitos acadêmicos o têm como o mais importante discurso do século XX. Mais de 90% da população do país sabe do que se trata o bordão. Todos compreendem que as palavras de MLK foram fundamentais para a emancipação do negro no país (será mesmo?) e que o vigor da sua fala ecoa até hoje em algumas vitórias recentes pela universalização da cidadania.
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Abaixo, portanto, vão alguns pontos que talvez você não saiba sobre o emblemático “Eu tenho um sonho” e seu autor:
Eu não tenho um sonho. A clássica frase que dá nome ao discurso quase chegou a não ser pronunciada. “Não use o ‘eu tenho um sonho’”, aconselharam pessoas próximas a MLK, na noite anterior à marcha. “É muito clichê.” De fato, Luther King já havia lançado mão desse refrão diversas vezes antes, e a frase não constava na versão final datilografada lida ao microfone — ele ficou até as 4h da madrugada revisando o texto. “Foi improviso”, afirma o jornalista Gary Younge, autor do recém-lançado The Speech: The Story Behind Dr. Martin Luther King’s Dream, ainda sem versão em português. “Droga. Ele está usando ‘o sonho’”, disse Wyatt Walker, também pastor e próximo a King.
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Já tive sonhos melhores. Uma infinidade de fatores devidamente sincronizados fizeram do discurso de 1963 o que ele é hoje. O momento histórico, a peculiaridade da plateia à qual se dirigia (composta também por brancos), as mudanças institucionais e legais que se seguiram, foram alguns deles. Mas muita gente próxima a MLK, que acompanhava de perto a luta social da época, diz que o “Eu tenho um sonho” não foi, nem de longe, o mais brilhante pronunciamento de Luther King. Essas pessoas, como conta Younge, não faziam ideia da dimensão que o discurso iria adquirir nas décadas seguintes.
Muito além do sonho. Quatro anos mais tarde, após algumas vitórias antissegregacionistas, MLK recalibrou sua pauta, dando maior importância à denúncia da pobreza e pedindo por mais intervenção do governo. Além disso, Luther King era um crítico ferrenho da Guerra do Vietnã, chegando a chamar os EUA de “os maiores provedores da violência no mundo”. Para a nação, é muito mais vantajoso que o herói seja lembrado apenas por seu sonho utópico, do que por suas incômodas restrições ao capitalismo e à política externa norte-americana.
Eu tenho um sonho distorcido. Em grande medida, a unanimidade do discurso foi alcançada às custas das diversas interpretações que dele emergem. São tão distintas, que trechos isolados da fala de Martin Luther King são por vezes “sequestrados” por setores conservadores da sociedade. A frase preferida é: eu sonho com o dia em que as pessoas “possam viver numa nação onde não sejam julgadas pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu carácter”. Assim, colocam o próprio MLK, o pai da luta pela emancipação do negro, numa posição aparentemente contrária ao sistema de cotas raciais e outras ações afirmativas. Como se um punhado de leis que permitisse que brancos e negros frequentassem os mesmos bares, ônibus e escolas fosse equivalente a decretar o fim do racismo.
O sonho nos jornais do dia seguinte. No geral, a repercussão do discurso do dia 28 de agosto de 1963 foi boa. Mas nem todos os jornais embarcaram de imediato no bordão. Algumas publicações sequer deram destaque à frase poderosa. A exemplo do racismo na sociedade, alguns jornais também torceram o nariz (para dizer o mínimo) para a performance de MLK. “Washigton está novamente limpa agora que o lixo negro foi removido”, estampou um jornal de Jackson, no Mississippi, legendando a foto de uma lixeira deixada após a marcha.
Eu tenho um sonho grampeado. Os eventos de 28 de agosto de 1963 serviram para apertar o cerco do FBI sobre Martin Luther King. A repercussão do discurso fez com que o procurador-geral dos EUA e irmão do presidente, Robert Kennedy, autorizasse um sistema de vigilância que perduraria até o assassinato de MLK, em abril de 1968. O paranoico criador do FBI, J. Edgar Hoover, providenciou escutas e grampos telefônicos para tentar provar, sem sucesso, a ligação de King com o Partido Comunista. Sabe-se também que foi montada uma verdadeira operação de guerra em Washington
Eu tenho um sonho™. Quer reproduzir o discurso de Martin Luther King? Vai ter que pagar uma taxa à iniciativa privada. Pelo menos até 2038, quando completam-se 70 anos da morte de King, e o vídeo cai em domínio público. As “donas do sonho”, entre as quais está a gigante EMI Publishing, não divulgam o valor da fatura, mas grandes emissoras norte-americanas já enfrentaram processos judiciais por terem colocado fragmentos do discurso em cadeia nacional.
O sonho não tem preço. Onde foi parar o discurso original, o pedaço de papel digitado lido por Martin Luther King em agosto de 1963? O dono da relíquia é o treinador de basquete George Raveling, voluntário de última hora para integrar a segurança de Luther King no palco. Raveling recebeu a cola das mãos do próprio MLK, momentos após o fim do discurso. Ele tem o documento até hoje e já recusou algumas propostas milionárias para vendê-lo.
Eu tenho um sonho, sonho, sonho, sonho… O texto do discurso pronunciado por Luther King já traz em si uma série de alusõesRicardo III) e Abraham Lincoln, em cujo memorial foi realizada a Marcha. O discurso e a atuação de Luther King também inspiraram incontáveis canções, filmes, livros e obras de arte, especialmente após seu assassinato. Eternizado e mundialmente conhecido, o bordão “I have a dream” ultrapassou as fronteiras dos EUA, ganhou cartazes, camisas e vozes em manifestações por direitos humanos da Praça da Paz Celestial, na China, ao muro israelense na Palestina.
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