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Cena do filme “Branco Sai, Preto Fica” (2014), de Adirley Queirós, que estreou em março de 2015 nos cinemas brasileiros
Às 10h da manhã, no primeiro dia de aula do curso de cinema da Universidade de Brasília (UnB), o professor exibia em uma televisão de 14 polegadas o filme “A Greve” (1925), de Sergueï Eisenstein. Então aluno, Adirley Queirós, com 28 anos de idade, mantinha os olhos cravados na tela. Até ali, vivia como jogador de futebol em times pequenos e amadores. Não manjava nada de cinema. Nada. Não assistia a filmes, muito menos documentários. Entrou de gaiato na faculdade querendo cursar comunicação. Optou pelo cinema, já que a nota de corte do curso era a mais baixa. A paixão foi fulminante. Anos depois, em 2014, o promissor e tardio pupilo diplomado faturava cinco prêmios no Festival de Brasília e abocanhava outros tantos em festivais internacionais com “Branco Sai, Preto Fica”, que mescla documentário e ficção.
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O longa, que estreou em março, traz como pano de fundo um trágico dia no Quarentão, local que hospedava bailes black na cidade-satélite de Ceilândia, no Distrito Federal, durante os anos 80. Em uma das corriqueiras batidas policiais, dois frequentadores ficam feridos. São os personagens Marquinho (Marquin do Tropa) e Sartana (Shokito), que misturam seus depoimentos reais com elementos fictícios. O primeiro ficou paraplégico depois de ser atingido pela polícia e hoje se locomove com o auxílio de uma cadeira de rodas. Já o segundo utiliza uma perna mecânica. No dia do ocorrido, ele perdeu um dos membros depois de ser atropelado pela cavalaria da polícia. Ambos são amigos de infância do diretor e roteirista Adirley. “No começo, a ideia era fazer um documentário clássico sobre o baile do Quarentão. Tudo mudou quando propus o projeto ao Marquin. Ele disse que não, que não queria um filme contando a vida dele, mas, sim, um filme de aventura”, explica. A história tem como terceiro personagem Dimas (Dilmar Durães), sujeito que vem do “futuro dominado pela vanguarda cristã” com o objetivo de unir provas que concretizem os danos causados à população no dia do baile.
O trailer de “Branco Sai, Preto Fica” é um tapa na mente. A trilha sonora traz a estarrecedora “Bomba Explode na Cabeça“, de MC Dodô, cujos versos declaram guerra de antemão: “Bomba explode na cabeça, estraçalha ladrão. Fritou logo o neurônio que apazigua a razão. Eu vou cobrar e, com certeza, a guerra eu vou ganhar. Os trutas e as correrias vão me ajudar”. Vencedor de edital, o filme custou módicos 221 mil reais. O diretor ilustra o orçamento: “Alugamos cenário, pagamos todo mundo”.
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Ainda que a bunda-molice permeie parte do discurso de cineastas nacionais, amarrados às verbas públicas ou a monopólios televisivos que só produzem esterco audiovisual, Adirley não joga o jogo e faz questão de ensejar: seu filme é político e apresenta uma vingança simbólica. “Nossa determinação era fazer um filme político, que questionasse, que fosse para o enfrentamento. Talvez tenha sido a parte mais deliberada, mais planejada. É uma vingança contra o Estado, o governo, a polícia. Equipe e atores eram motivados a fazer um filme em que iríamos pra frente do opressor.”
A vingança está no enredo: munido da ajuda de amigos, Marquinho planeja uma retaliação grandiosa. A dificuldade para se mover não o impede de tocar a vida e dar continuidade à sua paixão pela música. Em uma casa simples, apetrechos tecnológicos ajudam o protagonista a descer e subir andares e manter uma rádio amadora no porão. Ao microfone e com a ajuda de beats emitidos por vinis, ele improvisa uns raps doidos. A emoção rasga o peito quando Marquinho se lembra do dia em que a polícia esteve no Quarentão e tirou-lhe o movimento das pernas com tiros. “Bora, bora, bora, bora. Puta prum lado e viado pro outro. Bora, porra. Anda, porra. Tá surdo, negão? Encosta ali. Tô falando que branco lá fora e preto aqui dentro. Branco sai e preto fica, porra.” As doses de realidade foram aplicadas pacientemente: durante as gravações, os programas de rádio eram transmitidos de verdade. “A rádio era ao vivo”, explica o diretor. “Ele falava ao vivo mesmo. Tinha uma emoção.”
Marquin – vencedor do prêmio de melhor ator no Festival de Brasília – e Shokito não são atores profissionais. Ambos moram praticamente na mesma rua que o diretor, em Ceilândia. “A cidade tem um histórico de opressão. Nos anos 70, o governo de Brasília pegou 80 mil pessoas e jogou 50 quilômetros cerrado adentro. Ceilândia nasceu de um apartheid territorial. Durante muito tempo, ela foi estigmatizada como a grande periferia do Distrito Federal. É um lugar de muita migração, principalmente nordestina. É completamente diferente de Brasília, tanto na arquitetura quanto no modo de viver”, frisa Adirley.
A intimidade ajudou na hora de compor as cenas do longa, que nunca teve um roteiro clássico impresso no papel. “Não existia roteiro, porque o filme todo era baseado na ideia da fabulação. Eu propunha histórias e acontecimentos. A partir daí, eles [atores] buscavam na memória o que podia ser falado. Cada dia, dependendo do clima, acontecia uma coisa.”
Discernir realidade de ficção pode ser complicado em “Branco Sai, Preto Fica”. Mas nada muda o que vemos todos os dias nos noticiários: a periferia exposta ao terror policial em tantos aspectos diferentes. Sorte braba o cinema nacional ter um diretor e roteirista disposto a expor as mazelas de um sistema muitas vezes apaziguado pela imprensa – que adora aplaudir um cineminha transgressor, mas continua cagando regras ao falar de pobre, preto e favelado nas grandes redações.
Adirley não para e quer futucar mais a fundo: seu próximo projeto cinematográfico irá trazer as mulheres como protagonistas da periferia, sempre retratada através dos homens – bandidos ou mocinhos. “Como seria o centro da periferia ocupado pela mulher? O centro da rua, das relações, da música, tomando conta do bar? Falaremos disso usando um pouco do absurdo.”
Aguardemos.
Matéria original publicada no site da Vice Brasil.