Para a pesquisa, os animais são analisados quanto à postura, locomoção, interação e ingestão de alimentos
Apesar da crescente preocupação nacional e internacional com o bem-estar dos animais, espécies pecuárias ainda são negligenciadas quando o assunto é dor. “A ausência de escalas cientificamente validadas que auxiliem produtores, veterinários e pesquisadores a reconhecer e a mensurar a dor nesses animais contribui para o tratamento inapropriado ou insuficiente da dor”, afirmou Stélio Pacca Loureiro Luna, professor de medicina veterinária.
Docente da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Botucatu (SP), Luna coordena um Projeto Temático que, desde 2010, busca propor e validar escalas que indiquem se, para determinado quadro clínico, é recomendável ou não aplicar analgésicos. O foco principal é a dor aguda pós-operatória em bovinos, equinos e suínos.
As escalas são criadas a partir da análise de alterações comportamentais relacionadas a fatores como postura, posição da cabeça, locomoção, interação com o ambiente, ingestão de alimentos, atenção à ferida cirúrgica, entre outras.
Para identificar e analisar as alterações, os pesquisadores gravam vídeos em momentos distintos: antes do procedimento, quando os animais estão sem dor; logo após a cirurgia, quando há um pico de dor; e depois da aplicação de analgésicos, quando se espera que já não haja dor.
“O procedimento que adotamos para as três espécies estudadas foi a castração, por ser relativamente invasivo, atingir tecidos de alta sensibilidade, gerar uma inflamação grande e estar entre as cirurgias mais realizadas nesses animais”, explicou Luna.
A etapa de filmagens, com cerca de 700 horas, já foi concluída. Os vídeos dos suínos, captados a partir de câmeras instaladas nas baias, estão em análise pela faculdade. As imagens dos equinos (também feitas a partir das baias) e dos bovinos (gravadas em pastos, com anteparos separando observador e boi, a fim de que a presença do primeiro não afetasse o comportamento do segundo) já passaram às fases seguintes: validação externa e cálculos estatísticos.
A validação do conteúdo que dará forma às escalas é feita por especialistas e pesquisadores vinculados a instituições parceiras no Brasil, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Espanha e em outros países da América do Sul, como Uruguai e Argentina.
Cada avaliador recebe trechos de vídeos sem ordem cronológica, ou seja, sem saber se o animal em questão foi filmado antes ou logo após a cirurgia ou ainda depois da medicação. Então, assinala em uma tabela se recomendaria a aplicação de analgésicos; classifica a dor de acordo com uma escala descritiva simples (sem dor = 0; dor leve = 1; dor moderada = 2, dor intensa = 3); e indica quais alterações comportamentais consegue perceber a partir das imagens.
Por fim, a equipe da Unesp recebe a devolutiva dos materiais, faz comparações com as suas conclusões iniciais e realiza análises estatísticas para compor escalas validadas em três idiomas (português, inglês e espanhol). São tabelas com a descrição das alterações comportamentais mais relevantes, acompanhadas de vídeos e classificadas com notas que, somadas, resultam em um escore total. “A partir de cerca de um terço da pontuação máxima, por meio de cálculos matemáticos, considera-se que o animal é meritório de receber analgésicos”, afirmou Luna à Agência Fapesp.
“Quando estiverem finalizados, os produtos finais do estudo serão pioneiros para dor aguda em bovinos e suínos, que ainda não contam com escalas validadas nacional ou internacionalmente”, disse o pesquisador. “Entre equinos, até então havia somente uma escala ortopédica, mas nada a respeito de tecidos moles, atingidos, por exemplo, pela castração.”
As novas ferramentas serão disponibilizadas gratuitamente no site Animal Pain, no qual a Unesp já publicou uma escala de dor aguda em gatos, resultado de um projeto de pós-doutorado supervisionado por Luna e apoiado pela Fapesp. Dois dos artigos relacionados a esse estudo podem ser lidos em Journal of Feline Medicine and Surgery e BMC Veterinary Research.
“Ampliar os conhecimentos sobre a dor e, assim, aplicar analgésicos com mais propriedade é importante para o bem-estar dos animais e do ponto de vista prático. Isso porque pode haver ganhos [para o produtor], como menor tempo de recuperação pós-operatória e redução de inflamações”, disse Luna.
Anestesia em suínos
Ainda no âmbito do Projeto Temático, Luna orientou uma iniciação científica sobre os efeitos da castração de leitões com e sem o uso de anestésico local.
A investigação concluiu que o ganho de peso nos animais castrados com anestesia é superior ao dos animais que não recebem anestésicos.
“Em termos financeiros, há um ganho significativo para propriedades com milhares de animais. O procedimento cirúrgico fica um minuto mais lento, mas a relação custo-benefício é promissora. Sem contar que a medida colabora com o bem-estar animal e agrega valor ao produto perante o mercado consumidor”, disse Luna.
A partir de tal comprovação, os pesquisadores esperam inspirar o uso de anestésicos em suínos durante outros procedimentos que em geral são feitos sem anestesia, como o corte da cauda e a extração de dentes.
Dor crônica em cães
Por meio de um projeto de pós-doutorado, a equipe de Luna também busca estabelecer correlações entre o IDCH (Índice de Dor Crônica de Helsinki) — criado pela Universidade de Helsinque, na Finlândia, para avaliar a dor em cães — e experimentos realizados na própria Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp.
“Esse tipo de escala, referente a problemas crônicos, é feita a partir de relatos dos proprietários de cães, que, por conviverem diretamente com os animais, podem opinar sobre o humor, a disposição para brincar, entre outros fatores. Buscamos incorporar elementos mais objetivos a esse tipo de ferramenta, usando a análise de movimento (cinética) dos animais e plataforma de pressão (baropodometria)”, afirmou Luna.
Para tanto, foram observados animais com displasia coxofemoral (um problema no assentamento da articulação entre o fêmur e a coxa), enquanto caminhavam sobre a plataforma de pressão. Os pesquisadores coletaram dados sobre a movimentação, a angulação das patas, a pressão exercida sobre o dispositivo e a distribuição do peso em cada membro.
“Pretendemos correlacionar as medidas objetivas da locomoção com o IDCH a fim de aprimorar a mensuração da dor e indicar possíveis tratamentos”, disse Luna.
* Texto publicado originalmente no site da Agência Fapesp
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