No programa 20 MINUTOS HISTÓRIA desta terça-feira (06/07), o fundador de Opera Mundi, Breno Altman, analisou a mais longeva coalizão de esquerda da América Latina, a Frente Ampla uruguaia, fundada em fevereiro de 1971.
Para o jornalista, ela é um exemplo para a esquerda brasileira: “Sua história pode ser útil para a construção de uma frente que agrupe todos os partidos e correntes de esquerda, salvaguardando sua autonomia, mas de forma unitária, além de representar também os movimentos sociais e populares”.
Altman narrou a história da coalizão progressista uruguaia. Desde meados do século 19, o Uruguai vivia um regime bipartidário, marcado pela disputa do poder entre o Partido Nacional, conhecido como “blancos”, e o Partido Colorado, ambos fundados em 1836.
Enquanto os “blancos” representavam os grupos econômicos rurais, os latifundiários e pecuaristas, os colorados, que presidiram o país de 1865 a 1959, eram a expressão dos grupos capitalistas e médios urbanos, especialmente a burguesia comercial, industrial e as camadas médias.
“Apesar de um movimento sindical robusto, emergente no século 20, e de partidos progressistas com certo peso, como os socialistas e os comunistas, a bipolaridade percorreu imutável décadas e mais décadas”, contou.
De acordo com o Altman, o grande desafio era criar uma coalizão que fosse além da disputa eleitoral, “permitindo o surgimento de um movimento político, ideológico e cultural que pudesse transformar a energia social das lutas reivindicatórias em uma ferramenta para a luta pelo poder”.
Para tanto, era imprescindível a unidade de todas os partidos de esquerda, incluindo também legendas de centro-esquerda e grupos desgarrados dos partidos tradicionais, sob uma só coordenação, um só programa e uma só legenda, com vida organizativa cotidiana e inserção em todas as áreas de combate popular.
“Somente foi possível avançar nessa direção com a unificação do movimento sindical, principal base de todos os partidos de esquerda. Havia divisões históricas, primeiro entre anarquistas e comunistas, depois entre esses e os socialistas, além de muitos sindicatos autônomos e controlados por grupos menores”, explicou.
O passo mais importante no rumo da coalizão de esquerda, na opinião de Altman, foi o Congresso de Unificação Sindical, que transformou a Confederação Nacional do Trabalhador (CNT), criada em 1964, de um mecanismo coordenador de todos os organismos do trabalho em uma central sindical única, incorporando todos os sindicatos do país nos anos seguintes.
“Os uruguaios passaram a ter uma só central sindical, ao lado de uma única federação estudantil, a FEU – Federação dos Estudantes Uruguaios”, enfatizou.
Construção da unidade
No dia 5 de fevereiro de 1971, foi fundada a Frente Ampla, com a participação inicial de três partidos – os socialistas, os comunistas e os democrata-cristãos -, além de grupos dissidentes de “blancos” e colorados. Foi escolhido como seu primeiro presidente o general progressista Liber Seregni.
Para garantir a unidade, a forma de organização aprovada foi baseada na proporcionalidade: cada partido, coletivo, ou aliança de partidos e grupos, poderia apresentar uma lista nas eleições internas obtendo, no comando da Frente Ampla, o número de vagas correspondente à sua votação na base.
Como o sistema eleitoral uruguaio prevê a apresentação de sublegendas nas eleições, menos nas presidenciais, essas mesmas listas disputavam os cargos públicos. Por esse sistema, cada partido ou federação (no caso da Frente Ampla) soma os votos de todos os seus candidatos a determinado posto e a legenda vitoriosa o ocupa com o seu candidato mais votado.
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Em 1971, foi fundada a Frente Ampla, com a participação inicial de três partidos: os socialistas, os comunistas e os democrata-cristãos
“Alguns setores de esquerda, no entanto, ficaram de fora da Frente Ampla. O mais notório foi o Movimento de Libertação Nacional, conhecido como os tupamaros, que tinha entre suas fileiras o futuro presidente Pepe Mujica e que, naquela época, defendia uma estratégia de luta armada”, ponderou Altman.
Poucos meses depois de criada, a chapa da Frente Ampla à Presidência, formada por Seregni e Juan Jose Crottogini, obteve 18,3% dos votos válidos.
Logo em seguida, porém, veio o golpe de Estado de 1973, no governo de Juan Maria Bordaberry, da direita colorada, que levaria os militares ao comando do país até 1985.
“A Frente Ampla foi legalmente proscrita. Muitos de seus líderes acabaram perseguidos, banidos e presos. Vários foram assassinados, incluindo alguns dos fundadores da coalizão, como o senador Zelmar Michelini, morto pela Operação Condor, na Argentina, em 1976”, ressaltou.
Segundo Altman, porém, a Frente Ampla continuou operando na clandestinidade, incluindo a resistência armada, movida por alguns de seus grupos internos.
“Com a crise da ditadura, no início dos anos 80, a Frente Ampla emerge como a principal ferramenta de organização e mobilização popular contra o regime dos generais. Na primeira eleição presidencial a que pode concorrer desde 1971, obteve 22,1% dos votos, ainda debaixo da ditadura, com Crottogini de candidato, pois Seregni continuava proscrito”, relembrou.
No poder
Com o fim da ditadura, em 1985, a Frente incorporaria novas forças, “novos grupos dissidentes dos partidos tradicionais, e também organizações de esquerda que haviam ficado de fora, como os próprios tupamaros”.
Em 1989, a Frente Ampla conquistou sua primeira vitória eleitoral significativa. Conseguiu, pela primeira vez, a prefeitura de Montevideo, com Tabaré Vázquez, “para mantê-la sob comando frenteamplista até hoje”. No ano de 1999, a Frente Ampla “desbancou de vez o bipartidarismo”, obtendo 39,06% dos votos e “chegando na frente tanto de colorados quanto de ‘blancos’ no primeiro turno”.
“A primeira vitória presidencial ocorreu em 2004, 33 anos após a criação da Frente Ampla. O mesmo Tabaré, que já havia se apresentado como candidato em eleições anteriores, seria o primeiro presidente eleito por essa coalizão de esquerda, com 50,45% dos votos”, relatou Altman.
A coalizão manteve o comando do governo com Pepe Mujica, eleito em 2009, e que seria sucedido novamente por Tabaré, vitorioso no pleito de 2014.
Durante os três mandatos, a Frente Ampla também conseguiu maioria na Câmara dos Deputados e no Senado. Mas o ciclo frenteamplista se encerraria em 2019, com a derrota de Daniel Martinez para o atual presidente, Luis Lacalle Pau, do Partido Nacional.
“Durante esse longo período, a Frente Ampla foi adotando modificações organizativas, particularmente depois de 1994, que permitiram tanto a filiação individual à coalizão [no início o critério era apenas coletivo, ou seja, de partidos e grupos] quanto a inscrição de movimentos sociais”, discorreu Altman.
Ele explicou que no interior da coalizão convivem desde partidos anticapitalistas e revolucionários até agrupamentos sociais-democratas ou sociais-liberais. “A história mostrou que, no Uruguai, a esquerda somente poderia enfrentar os partidos oligárquicos se caminhasse junta, não somente em termos eleitorais, mas construindo uma referência cultural, política e ideológica permanente para todo o povo”, concluiu