“Quando os militares entram num espaço de poder, não saem pela própria vontade”, afirmou a historiadora francesa Maud Chirio, especialista em estudos sobre o regime militar brasileiro, no programa 20 MINUTOS desta quarta-feira (07/09).
Autora do livro A Política nos Quartéis: Revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar brasileira (ed. Zahar), ela diz, em entrevista ao jornalista Breno Altman, fundador de Opera Mundi, que o projeto político do Exército brasileiro foi formulado no Estado Novo, pelo general Góis Monteiro, e que o intervencionismo militar nunca desapareceu desde então.
Lembrando que a natureza civil da República brasileira é uma exceção, mais que uma regra, a historiadora descreve o ápice desse poder após o golpe de Estado de 1964 e suas consequências até os dias atuais.
“Na ditadura militar, a instituição exerce o poder e afirma como legítimo exercer o poder, no ápice do projeto de tutela militar. Depois da volta à democracia, ou do nascimento de uma democracia mais plena, esse projeto não desaparece”, argumenta.
Segundo ela, uma cegueira coletiva da esquerda diante da reorganização do Exército como força política permeou o período desde a desestabilização do governo de Dilma Rousseff e culminou na ascensão do ex-capitão Jair Bolsonaro ao poder. “Muitos brasileiros acreditaram que o projeto militar de ser uma força política na condução do Brasil tinha desaparecido, sem que houvesse nenhuma política forte e firme para que esse intervencionismo militar fosse abandonado. E não foi”, destaca.
Diante da impunidade dos crimes praticados por militares durante a ditadura, a transição democrática acabou fracassando, nas palavras de Chirio. As instituições militares mantiveram zonas de autonomia que trouxeram dificuldades para a afirmação da autoridade civil, causando incômodo, mas não reação por parte do poder e da sociedade civil brasileira.
“Esse incômodo em relação às Forças Armadas, no final, tinha capacidade de permitir o que a gente está vendo, uma reabilitação da ditadura, do seu projeto político de luta contra um fantasma comunista, repressão das organizações populares e legitimação do poder militar”, constata. A fórmula “ditadura nunca mais”, difundida no início das transições no Brasil e em outros países latino-americanos, ficou mais como slogan que como realidade.
Protagonizado pela classe política, pela mídia e o judiciário, o golpe de 2016 deixou oculta a presença das Forças Armadas no golpismo. “Era uma ruptura que não tinha mais protagonismo militar, continuávamos na ilusão de que a democracia estava consolidada. De certa maneira, a gente escolheu ignorar o que acontecia dentro das Forças Armadas”, defende, em relação ao período pós-2014. Ela lembra que havia sinais graves da persistência de uma mobilização militar que nunca deveria ter sido aceita.
Chirio credita à Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada em 2011 e concluída em 2014, um papel central no apoio militar ao golpe contra Dilma e na mobilização ultraconservadora dos militares. “No final, foi um dispositivo de justiça tradicional tímido, numa situação de ofensiva ultra-revolucionária não só nas Forças Armadas brasileiras, mas no continente, no Ocidente.”
O empoderamento de setores conservadores sob a guarda de novas teorias políticas sobre “guerra cultural” e “marxismo cultural” foi absorvido desde muito cedo pelo Exército brasileiro: “Chegando com um dispositivo de verdade sobre o passado, Dilma tem à sua frente uma extrema direita, inclusive militar, convencida que reescrever a história é a arma do comunismo. Foi assim que a CNV foi percebida”.
Após as manifestações de 2013 e a campanha eleitoral de 2014, a existência da CNV se voltou contra quem a instalou: “O discurso de pedagogia pública da presidenta em torno do passado virou uma coisa do PT, da esquerda, e esse foi um efeito perverso terrível da Comissão da Verdade, que não é culpa de de quem a instalou, é um acidente da história”.
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Maud Chirio é uma historiadora francesa especialista em estudos sobre regime militar brasileiro
Na interpretação da professora, o Exército brasileiro nasceu associado ao poder com o objetivo de organizar a repressão às rebeliões populares e integrar o projeto de consolidação da ordem escravocrata do Estado: “No Segundo Reinado, é um projeto de violência com objetivo de produzir e depois manter uma hierarquia social e racial rígida”. A Guerra do Paraguai (1864-1870) exerceu o papel de divisor de águas na história do Exército, profissionalizando-o e conferindo-lhe centralidade política.
O tenentismo, nos anos 1920, avançou sobre uma estrutura social dominada pelos latifundiários, mas não necessariamente contrária a eles, em sua avaliação. “Parte do que mobiliza e motiva os tenentes é o sentimento de ser legítimo exercer o poder e defender interesses da corporação que não vão ser ao final contrários aos dos latifundiários.”
Chirio aponta uma característica comum à geração dos tenentes e às dos militares das décadas de 1950, 1960 e 1970: “Se consideram muito superiores aos civis, muito melhores, mais morais, patriotas e capazes de defender a nação de seus inimigos, que em parte são os comunistas. A mitologia anticomunista é central na instituição”.
Essa reivindicação de legitimidade foi motor central do intervencionismo militar no século 20 e ainda hoje: “Continua sendo o foco do discurso militar dizer que. se são militares, então são melhores. É o jeito que cada militar, Bolsonaro incluído, tem que colocar na frente que não pode ser corrupto”, exemplifica.
“A crítica à República civil é quase tão antiga quanto a República. E a crítica militar, utilizando essa figura como uma contra-elite, um grupo de salvadores da pátria”. Nos anos 1920, as possibilidades ideológicas eram mais abertas e permitiam a convivência de forças conservadoras e progressistas dentro da instituição. “Foram se fechando num processo mais e mais conservador, que ganhou a batalha nos anos 1950 e definitivamente em 1964. A parte progressista e nacionalista das Forças Armadas foi reprimida pelo poder militar, e nunca renasceu”.
Tal como a suposta cruzada contra a corrupção, tampouco é nova a aversão ao sistema eleitoral hoje vocalizada pelo bolsonarismo. “A desconfiança da democracia representativa existe, não só no Brasil, como se o sistema eleitoral fosse produtor de decadência moral. Isso levou a certa fragilidade do sistema democrático, porque se perpetuava na cultura popular e militar a ideia de que política é uma palavra suja e feia.”
Para o futuro, em caso de vitória de Lula, Maud Chirio alerta para a necessidade de uma nova – e desta vez real – transição democrática. “Não é só começar um novo mandato, tem que ter uma ambição de refundação do Estado, das normas, num processo que envolva cada cidadão e organize algo à altura do que foi feito, e não foi feito pouco”.
Mesmo que Bolsonaro seja derrotado, o bolsonarismo e a questão militar permanecerão em cena. Não foi Bolsonaro que atraiu os militares para a cena política. Já havia uma ultrapolitização e uma explosão de candidaturas militares desde 2014. Bolsonaro foi conveniente, mas ele é um fenômeno em si e tem que ser levado sério, não só os militares e seu projeto de poder”, adverte.