No programa 20 MINUTOS ENTREVISTA desta sexta-feira (23/07), o jornalista Breno Altman entrevistou o historiador e professor José Mao Júnior sobre os 100 anos do comunismo chinês.
Júnior fez um repasso pela história da China, “com cuidado, pois podemos cometer muitos erros se a analisarmos com olhos ocidentais”. Para ele, a nação é a grande civilização da história da humanidade.
“Ao contrário dos romanos e dos gregos, a civilização chinesa perdurou. E os chineses só não chegaram na Europa, antes dos europeus chegarem à China, porque não quiseram, porque eram muito mais desenvolvidos do ponto de vista marítimo”, reforçou.
Começando pela criação do Partido Comunista, Júnior contou que tudo começou a finais do século 19, quando o comércio estrangeiro entrou no país, colidindo com a sociedade tradicional. Em 1911, o Partido Nacionalista Chinês, o Kuomintang, faz uma revolução, destitui o Império e inaugura uma República, “a partir daí, a China começa a passar por um processo de modernização nos moldes ocidentais”. A referência para essa modernização era a União Soviética.
“É dentro desse contexto que, em 1921, é fundado o Partido Comunista da China (PCCh). Para entendermos as particularidades desse partido, precisamos saber que, já na fundação, temos a formação de duas alas essenciais divididas entre dois grandes fundadores. Um dele é Li Dazhao, que procurava adaptar o marxismo à realidade chinesa – e foi professor de Mao Tse Tung – , e Chen Duxiu, que tinha uma visão mais ocidental de incorporação da teoria marxista”, explicou o professor.
Apesar do Kuomintang (KMT) em sua origem também ter sido de caráter progressista, quando o partido, aliado ao PCCh, derrota os senhores da guerra que governavam a China naquele momento, devido ao colapso da República em 1913, seu líder, Chiang Kai-Shek, que tinha laços com a burguesia, “decidiu que não precisava mais de uma aliança com os comunistas”.
“Os comunistas foram massacrados no que ficou conhecido como o massacre de Xangai, em 1927, episódio que marcou a ruptura entre o KMT e o PCCh, e o início da guerra civil chinesa, entre comunistas e nacionalistas”, contou.
Nesse período, Mao Tse Tung, que então se encontrava às margens do Partido Comunista, expulso do comitê central, se consolida como seu principal dirigente após a longa marcha, uma retirada estratégica em que ele partiu do sul do país com cerca de 100 mil soldados, e marchou por dez mil quilômetros, até o noroeste, onde chegou com apenas nove mil homens.
A guerra civil foi interrompida pela invasão japonesa, quando o KMT e o PCCh decidiram se unir para expulsar o exército nipônico: “A estratégia de Mao era combater juntos, mas avançar separado”, relembrou o historiador.
Ele destacou que foi durante essa guerra que o Exército Popular da Libertação, do Partido Comunista, ganhou o respeito da população, “porque eram vistos como os que realmente combatiam o invasor”.
“Eles se aproximaram da população camponesa e o comportamento dos soldados era considerado exemplar, porque Mao proibia os saques e estupros. Então se formou uma ligação entre a população camponesa tradicional e o exército, que também contribuía com os trabalhos do campo, já que eram aquelas pessoas que os mantinham, que os alimentavam”, enfatizou Júnior.
Além disso, ele ressaltou que o KMT não estava tão engajado no combate pois via no PCCh o inimigo principal, não no Japão: “Os fascistas japoneses não eram uma ameaça à propriedade privada. Eram uma ameaça à nação, mas não à burguesia, então o KMT fez o que a gente chamaria de corpo mole”.
Os nacionalistas foram entrar de fato na guerra em 1942, após o episódio de Pearl Harbor, quando os Estados Unidos passaram a pressioná-los e fornecer armas na luta contra o exército nipônico.
Com o fim da Segunda Guerra Mundia, em 1945, a guerra civil foi retomada, “os comunistas controlavam boa parte do campo e o KMT controlava a maioria das cidades”. O conflito terminou apenas em 1949, “quando o campo foi cercando as cidades”.
Os nacionalistas se refugiaram na ilha de Taiwan, onde tinham uma posição defensiva poderosa e não foram perseguidos pelos comunistas, já que o embate representaria baixas significativas ao PCCh.
Pós-1949
“Tomar o poder não significou de imediato a conquista da paz, porque coincidiu com o ataque dos EUA sobre a Coreia, e a China foi socorrer a Coreia. O filho de Mao morreu servindo como voluntário na guerra coreana”, relatou o professor.
Naquele momento, a esmagadora maioria da população era camponesa e a expectativa de vida era baixa, de apenas 32 anos de idade.
Reprodução
Historiador fez um repasso pela história da China ao longo dos últimos 100 anos
Assim, a primeira reforma feita foi a agrária, que ficou conhecida como a reforma do camponês rico: “Não foi radical. Eliminou o latifúndio, mas não eliminou a camada social do camponês rico, aquele com terras suficientes para si e que empregava outros camponeses ou arrendava parte da sua terra. E isso foi uma decisão política. Não queriam jogar essa camada no colo da contrarrevolução”.
Paralelamente, em 1953 foi criado o primeiro plano quinquenal, aos moldes dos planos soviéticos, priorizando a industrialização pesada.
Segundo o historiador, esse plano gerou conflitos dentro do partido, por parte da ala de Mao Tse Tung, pois privilegiava a economia urbana, em detrimento da agrária.
“Mao via enorme potencial revolucionário na população camponesa. Para ele, era possível chegar ao comunismo antes de uma industrialização plena. Mas a ala pragmática pensava que uma sociedade pobre socializaria a escassez. Em uma sociedade desenvolvida, socializaria a abundância. A ala mais à esquerda acabou lançando uma campanha estimulando as críticas ao próprio partido, para que ela, assim, conseguisse chegar ao poder e obter controle da política econômica”, revelou.
Foi assim que foi instituído o Grande Salto para Frente.
Para o professor, o Grande Salto para Frente era “maravilhoso” do ponto de vista ideológico, por estimular o fervor revolucionário em substituição à lógica burocrática do plano quinquenal.
“Falava sobre o fim da divisão entre trabalho manual e intelectual: camponeses sendo estimulados a escrever e altos dirigentes do partido a trabalhar no campo. Falava sobre o fim da divisão entre trabalho urbano e rural por meio do estímulo à criação de cooperativas e comunas populares. Mas a política do grande salto, ainda que sedutora nos princípios, foi desastrosa na sua execução. Tinha pessoas morrendo de fome no país”, lamentou.
De acordo com ele, isso abriu espaço para a ala programática, que incentivou a propriedade privada, o fim das associações camponesas, o retorno do ensino elitizado, “em uma clara tentativa de recuperar a economia chinesa”.
Somado a isso, com a morte de Josef Stalin e a publicação por parte de Nikita Kruschev dos documentos denunciando os crimes do antigo líder, a China oficializa sua ruptura com a União Soviética. “O inimigo principal para os chineses não eram os Estados Unidos, era a URSS. Por que a China conseguiu um posto permanente no Conselho de Segurança? Porque os EUA a colocaram ali para fazer frente à URSS”, ressaltou o professor.
Os conflitos internos entre ala esquerda e ala pragmática, como definiu o próprio Mao, levaram à Revolução Cultural, “que chegou a um ponto de radicalidade tão grande que o próprio partido comunista chegou a ser destituído”.
A ala esquerda prevaleceu, após dez anos de Revolução cultural (1966-1976), “mas praticamente ninguém foi morto, porque Mao não achava que isso solucionava o problema. Os líderes foram humilhados publicamente, mas não executados”.
O poder voltou a ser disputado ainda em 1976, após a morte de Mao Tse Tung, por três alas do PCCh: “O grupo dos quatro, que liderou a comuna de Xangai – incluindo a esposa de Mao; a ala centrista do partido, que tinha assumido a presidência naquele período; e a ala comandada por Deng Xiaoping”.
Deng Xiaoping se consolidou no poder e condenou o grupo dos quatro à morte. Ele também passou a implementar uma série de reformas econômica, militar e do Estado. Foi nesse contexto que ocorreu o episódio do Massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989.
“Tenho dificuldade de interpretar esse movimento”, confessou o professor. “Os estudantes reivindicavam uma quarta reforma, se manifestaram pela democracia. Não era contra o comunismo, mas queriam algo como a glasnost, que vinha sendo feita na URSS. Mas a notícia que se propagou é que eles eram contra o comunismo, inclusive foi o que se informou aos soldados trazidos de outras regiões da China, que não falavam mandarim, para reprimi-los. Então aí os soldados foram secos para reprimir os estudantes”, ponderou o historiador.
40 anos depois: a China é socialista?
Júnior analisou a realidade chinesa, em que coexistem dois sistemas, um de economia estatal e outro de economia privada. A partir daí, ele admitiu que a explicação mais adequada é a dada pelo próprio governo chinês: “É a via chinesa para a construção do socialismo. Incorporo, mesmo que a contragosto, o discurso oficial”.
Nesse cenário, Xi Jinping, o atual presidente, atua na manutenção do controle estatal, impedindo o controle da burguesia, na visão do professor. Por outro lado, a China perdeu sua autonomia econômica, “cresceu tanto que a autonomia desapareceu, depende cada vez mais da economia mundial”.
Do ponto de vista social, o historiador acredita que a China “é uma democracia popular”, pois existem mecanismos de consulta popular, “não sei se ideais, mas não piores que os dos EUA”.
Comparando o país asiático com o norte-americano, ele argumentou que o primeiro ainda não é imperialista, pois se contrapõe aos moldes imperialistas dos EUA, se apresentando como alternativa.
“Os EUA se preocupam que a China se torne o principal aliado econômico da América Latina. Não tenho a menor dúvida que a China sairá vitoriosa nesse embate imperialista. Sempre foi a maior civilização humana”, concluiu.