Fui tocada pela postagem da drag Mackayla Maria sobre Lurdes, uma moça que ela conheceu em um dos passeios por São Paulo. Segundo o relato no face, a Lurdes falou que ia votar no Bolsonaro, mas uma pulga mordeu a orelha da Mackayla que começou a querer saber sob quais condições se davam sua opção de voto.
Aí, conversa vai, conversa vem, a Mackayla descobriu que a Lurdes vinha de uma região do nordeste, uma cidadezinha, onde quase não pegava internet e as informações eram em suma transmitidas por zap-zap.
Então a Mackayla começou a conversar com a Lurdes em outro sentido, comentando sobre as facetas violentas e perigosas do discurso messiânico do Bolsonaro. Sei que, no final, a Lurdes falou que ia repensar o voto, a Mackayla foi ouvida e, numa circunstância absolutamente corriqueira, falou-se de política, de ética, de cultura da violência e do ódio com sobriedade e escuta.
Essa narrativa me tocou. Em meio a tantas piadas de companheiros e companheiras de esquerda sobre como o Bolsonaro mereceu ter levado a facada, eu me recusei a entrar nessa chave.
E seria fácil, porque tive vontade de fazer galhofa, bem como meus primeiros impulsos discursivos invariavelmente são cheios de violência e de uma assertividade ferina. Desde criança ouvi minha mãe falar que eu deveria aprender a lidar com a minha língua, porque eu sabia muito bem como usá-la para maltratar meus alvos. Esse foi um dos maiores ensinamentos que essa amorosa mulher, essa mesma que tantas vezes agiu de maneira brutal contra as próprias filhas, em momentos de angústia, solidão e desespero, deixou-me.
Já faz 31 anos que tenho tentado rever a maneira como organizo meu pensamentos, meus hábitos e as palavras para que elas não violentem mais ninguém. Tarefa impossível, mas na tentativa e no erro tenho tentando agir politicamente de uma maneira mais respeitosa.
Por que estou falando isso? Porque assumir o fato de um candidato ter levado uma facada, por mais que o sujeito signifique um retrocesso cruel do processo democrático, me põe em face de princípios nos quais acredito em relação ao direito à vida de toda e qualquer pessoa.
Isso não significa que eu o esteja defendendo como indivíduo, ou que esteja diminuindo a população periférica que é vítima de atentados sistematicamente. Apenas estou defendendo que as opiniões deixem os termos do pensamento binário instaurado por nossa história política de coronéis, personalismo e coalizões grotescas de partidos.
Mas não quero ficar repetindo o nome do candidato monstruoso. Queria pensar em seus eleitores. Há dados que afirmam que grande parte deles está no recorte da classe média branca e heterossexual sexista. Esses não me interessam, até porque é bem capaz que eles me torturem antes que eu comece a falar. Mas há um outro front de disputa, e esse me diz respeito como educadora, escritora e ativista social: os espaços periféricos que foram ignorados pela esquerda como base a ser formada.
Tenho conversado com meus estudantes do cursinho em Itaquera e percebo uma lucidez muito profunda sobre as eleições e os encaminhamentos que temos vivido no Brasil. Também percebo que há certo constrangimento quando há discordância e é nesse ponto que eu tento mediar e fazer com que todos sejam escutados, filtrando evidentemente qualquer possibilidade de discurso de ódio ou intoxicação do coletivo por agressividade.
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Isso não tem a ver com humanismo romântico. Tem a ver com a experimentação da sala de aula como um espaço de partilha, diálogo e afeto – e esse afeto não é necessariamente amoroso, às vezes vem cheio de ira e angústia, mas sobre esses sentimentos também precisamos lançar o olhar.
Meus estudantes não têm dinheiro. Pelo contrário, muitos deles dependem do ingresso na Universidade para melhorar a situação financeira familiar. Suas percepções sobre o mundo são complexas e exprimem a inteligência daqueles que aprendem pela prática tudo que a teoria tenta aprisionar. Ouvi-los é o mínimo para começar o exercício do diálogo.
Eles me fortaleceram para o próximo passo: enviar uma mensagem para o grupo da família. Novamente: meu grupo da família não está cheio de pessoas brancas, ricas e do sudeste. Somos todos de origem humilde, vivendo uma distância particular em vários estados do Brasil, como todo povo migrante.
Falei para todos que sou lésbica, que nossos corpos são negros embora alguns de nós não se percebam dessa forma, que eleger um candidato fascista é assinar nossa sentença de morte. Pedi licença, falei com tranquilidade. Depois me arrependi, me senti exposta, mas já era tarde.
Houve silêncio e uma sintomática recusa irônica ao que falei, mas houve também, por outro lado, muita conversa, sobretudo das mulheres. Falamos sobre política, amor cristão (a maioria da nossa família é adventista), respeito, democracia, desilusão, medo.
Eu não creio que uma estrutura democrática se transforma com ações pontuais como essas que tenho feito. Minha visão sobre a melhora de um país se dá do ponto de vista do levante em massa da população, mas não descarto a atuação individualizada, pedagógica. Não poderia. No cotidiano somos capazes de aprender quais as vias e os desvios interessantes para a prática política que defendemos, estou em etapa de testes ainda, talvez ela vá demorar muitas décadas.
Só sei de uma coisa: sigo inspirada pelas palavras de Audre Lorde, escritora negra e lésbica caribenha-americana: “As ferramentas do mestre nunca irão desmantelar a casa do mestre”. Não me valerei de dispositivos fascistas para combater o fascismo. Não, eu não quero ver o sangue.