Às vezes eu telefonava pra ela e
dizia: Claire, me traz um guarda-chuva? E ela respondia em automático: por que,
amiga? Tá chovendo homem? E eu treplicava também com o texto na ponta da
língua: não, amiga, tá chovendo merda.
A chuva sempre esteve na nossa
juventude em Belém como uma linha guia das conversas e dos desvios necessários,
lingüísticos e dos trajetos materiais. Fosse o que fosse, sobre nós ela
desabava, em horários fixos e fortuitos. Nos períodos de inverno amazônico chegava
a durar o dia inteiro e as ruas se inundavam daquelas águas que já nos eram
sabidas pelos rios que navegam no entorno de quem somos.
Eu, por mim, teria vivido de
chuva naquela época. Todas elas, a chuva que era metáfora para um caso amoroso
passageiro, a chuva de aplausos da escola de teatro, a chuva real das três da
tarde aplacar o calor que nos consumia o corpo silenciosamente, a chuva de
merda.
Clarisse e eu éramos dessa
espécie de gente que tira graça com tudo.
Voltar da escola em janeiro era
tomar um toró. Os poucos quarteirões que tínhamos de andar se prolongavam em
saltos de chapiscar as poças d’água formadas pelo empenho dos temporais sobre
os buracos que a prefeitura deixava brotarem aos borbotões em nossas ruas. As
calças jeans ficavam encharcadas, as mães irritadas, o uniforme escolar grudado
ao corpo, os cabelos molhados que de maneira veloz, ao vento, secavam.
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Queria que o clima fosse generoso e se apaziguasse num céu azul com sol brilhante (Foto: Edward Zulawski/Flickr CC)
Na Amazônia sempre foi tudo úmido
e quente, as transições rápidas e nada bruscas de temperatura formaram meu
corpo e minhas ideias. O som da chuva nas vidraças, a agonia da dona Manuela
avisando que a roupa no varal ia molhar, o cheiro das nuvens negras se
adensando no céu anteriormente ocupado pelo vôo plácido dos urubus, esses
caranguejos de asas, muito pretos e imponentes, a pavonear sobre nossas cabeças
a índole afrontosa dos marginais. Eu gostava de olhar para o céu, perceber com
cuidado a chuvarada se anunciando na trama muito lenta da vastidão aos poucos
infiltrada pelas nuvens, essas que apropriadamente se transformavam em minha
infância nas personagens impossíveis que eu viria a escrever mais tarde:
crianças sem cabeça, banquetes olímpicos, sambas tristes, elefantes amorosos.
O Abílio falou há algum tempo
que, como escritora, eu acerto a navalha quando falo de amor. Eu disse ao
Abílio que me empolgava a ideia de falar de amor como o João Cabral de Melo
Neto, na crueza anti-redentora do sentimento amoroso. Eu queria um amor que
comesse o meu nome como houve no conto “Os Três Mal Amados” do
raparigo.
Ficamos conversando sobre isso à
distância porque faz tempo eu vivo longe, numa cidade de pedra, onde o frio e
as gotas gélidas da chuva que resolveu chegar só agora se fazem imperiosos.
Falo com grande parte dos meus amigos por mensagens, áudios, pensamentos. Toda
a sorte de recursos que se façam cura para uma saudade que, me atemoriza essa
ideia, ainda está na infância uma vez que dificilmente eu voltarei a morar em
Belém. Uma saudade que vai crescer, amadurecer, se perpetuar e morrer – na leva
dos dias em que poderemos nos reencontrar, os amigos todos, em uma cerveja na
beira do rio Guamá, ali naquela nossa barraca do Ver-o-Peso. Essa que a gente
elegeu mais recentemente mesmo, na qual nos despejamos horas a fio em risadas e
conversações a respeito das coisas que se passam mundo afora – esse único
ambiente que nos é comum pelo acaso de termos nos encontrado em vida no mesmo
espaço-tempo histórico.
Nesse nosso encontro próximo eu
vou dizer ao Abílio que choro de amor, mas só porque todas as pessoas que amei
sempre me amaram muito. E por isso eu gosto tanto do amor, porque tive o
privilégio de ser amada.
Falei pra Laurinha, esses tempos:
eu gosto de gostar. Eu amo amar.
Em meu peito uns coveiros abrem a pauladas um buraco enorme
quando um namoro, um caso, um romance acaba, porque parece que já não há
sustento físico para o exercício daquilo que há de melhor em mim, ainda que eu
aja muitas vezes aos trancos e barrancos, sem saber como manipular a ferramenta
amorosa. Porque como todo mundo, quedo a chafurdar em erros obtusos, os vícios
terríveis e violentos disso que chamam humanidade. Mas que bom que posso dizer:
eu fui feliz.
Eu fui feliz, sim.
Agora, no entanto, meu único
desejo é que essa chuva triste de São Paulo acabe. Queria que o clima fosse
generoso e se apaziguasse num céu azul com sol brilhante, que meus cabelos
secassem rapidamente como em Belém. Eu só queria mesmo que a Clarisse me
trouxesse um guarda-chuva.