Com um resgate histórico da identidade humana, que coloca a mulher no centro e dá voz aos povos originários e excluídos, a 59ª edição da Bienal de Arte de Veneza abriu suas portas ao público, desde 23 de abril até 27 de novembro, após dois anos fechada por conta da pandemia da covid-19.
Intitulada “O leite dos sonhos”, a mostra foi inspirada no título do livro de Leonora Carrington. O mundo mágico da artista surrealista, no qual a vida é constantemente reinventada pelo prisma da imaginação, marca essa Bienal pós pandêmica.
Dividida entre os jardins onde ficam a maioria dos pavilhões nacionais e o arsenal (antigo depósito naval da marinha italiana), a exposição questiona a representação dos corpos e suas metamorfoses, a relação entre indivíduos e tecnologias, e a conexão entre os corpos e a Terra.
Como declarou a própria curadora do evento, Cecilia Alemani, a 59ª Bienal de Arte de Veneza é um “reequilíbrio necessário” diante da masculinidade branca eurocêntrica presente nas edições passadas da mostra. Não por acaso, 80% dos 213 artistas convidados são mulheres.
Antes deste ano, nunca se viu tanta obra com seios e vaginas como nessa edição. Mas não são imagens erotizadas do corpo feminino, pelo contrário, são corpos desmembrados que viajam pelo surrealismo mágico de Carrington e pelo ativismo identitário.
Em uma época que impõe uma pressão sobre a identidade das pessoas, essa viagem pela metamorfose dos corpos é pura resistência.
As grandes damas, em absoluto, do evento são as artistas Sonia Boyce e Simone Leigh. As duas foram as primeiras mulheres negras a representarem suas nações: Inglaterra e Estados Unidos, respectivamente. Elas também foram as primeiras artistas negras a vencerem o Leão de Ouro da Bienal em seus 127 anos de história.
Lucia Mottin
Por conta da covid-19, a 59ª edição foi adiada em dois anos; exposição acontece até 27/11
Através de imponentes esculturas que se encontram no pavilhão dos Estados Unidos e na entrada da exposição do Arsenal, Leigh desconstrói os estereótipos criados em relação às nações africanas e das mulheres negras criadas pela cultura colonialista norte-americana.
Descolonizar é necessário
O colonialismo está no centro da mostra. Pela primeira vez, o Pavilhão Nórdico, que representa os países da Noruega, Suécia e Finlândia, será renomeado Pavilhão Sámi.
Sámi é um povo originário, que vive na zona de fronteira desses países e da Rússia, que viu sua cultura ser dizimada por anos, quando até mesmo a eles era impedido, inclusive, de falar a própria língua.
Além dos Sámi, outro povo que foi e segue estigmatizado são os ciganos. Nesta edição da Bienal de Arte de Veneza, uma artista de origem cigana expõe no Pavilhão Polonês, algo que nunca ocorreu nos anos anteriores.
12 painéis de tecidos, que vão do chão ao teto, representam os 12 meses do ciclo de afrescos renascentistas do Palazzo Schifanoia, que fica em Ferrara, província italiana da região da Emília-Romanha. Cada mês corresponde a uma parte da história cigana.
O Pavilhão Russo estava fechado pois, por causa da Guerra na Ucrânia, o curador Raimundas Malašauskas pediu demissão, enquanto os artistas Alexandra Sukhareva e Kirill Savchenkov se retiraram desta edição. Por sua vez, o ucraniano – que não é um pavilhão, mas sim um muro que fica no primeiro andar da sala das armas do Arsenal – abriga a instalação “The Fountain of Exhaustion” (A Fonte da Exaustão, em tradução livre), de 1995, do artista Pavlo Makov. A obra é uma fonte feita de funil por onde escorre exaustivamente água.
Talvez a resposta a esta corrida contra o tempo de Pavlo esteja no pavilhão da Bélgica, um dos mais bonitos desta edição. Através de vídeos que exibem brincadeiras infantis filmadas em diferentes lugares do mundo, o setor aposta na alegria das crianças como estratégia de sobrevivência e resistência a este mundo estereotipado, dividido e sofrido.
Veja fotos da 59ª Bienal de Artes de Veneza: