Se é quase consenso que o neoliberalismo duro deixou a América Latina nos últimos anos, o mesmo não pode ser dito em relação ao papel periférico que nos foi imposto pelas economias centrais. Afinal, “apesar de termos tirado a venda dos olhos, ainda nos apoiamos nessa muleta que é a economia primário-exportadora”, denuncia Rafael Correa. A conclusão em tom de alerta é feita pelo presidente equatoriano em Equador – Da Noite Neoliberal à Revolução Cidadã, livro que mistura memórias e reflexões em narrativa para contar a história política e econômica equatorianas. A obra, originalmente publicada em 2009, ganha agora edição brasileira com 160 páginas e é lançada pela Boitempo Editorial.
Ao condenar a trajetória econômica do Equador e as escolhas políticas feitas em cima dela, Correa faz uma espécie de mea culpa a possíveis críticas ao seu governo: seu tom quer deixar claro que sua gestão buscou desde o primeiro mandato em 2007 fazer o possível em um cenário construído sob escolhas prévias.
Fotos: Divulgação/Boitempo
Correa, em livro: América Latina ainda se apoia na economia primário-exportadora
No caminho para o que ele enxerga como esforço para “superar os dogmas econômicos que sustentaram o neoliberalismo”, “elevar nossa consciência” e promover a justiça social, o economista formado pela Universidade Católica de Guayaquil com doutorado pela Universidade de Illinois – Urbana Champaign (EUA) lembra que muitos problemas estruturais do Equador são herança da época mais “próspera” do país: o chamado maná petroleiro, em vez de significar abundância e investimento em bens de capital, acabou por gerar dependência dos setores fiscal e externo, além de promover estagnação da indústria e agravamento da dívida externa.
“Desde então, a política econômica equatoriana foi orientada, primordialmente, a garantir a capacidade de pagamento do país para servir à dívida externa. Em 2000, de cada cem barris de produção petroleira, somente dois eram destinados à educação e à saúde do povo equatoriano”, lembra, antes de clamar pelo desafio de se construir uma economia sólida e interdependente dentro de uma Nova Arquitetura Financeira Regional (NARF), cujo eixo estaria em um novo processo de desenvolvimento, com um fundo de reservas e sistemas monetário e de pagamentos comuns.
Apesar de ter sido escrito entre 1993 e 2005, o livro que originalmente levava o título de Equador: de ‘Banana Republic’ a la No República permanece atual, segundo Isabella Marcatti, editora responsável pela versão brasileira. “As reflexões propostas pelo autor continuam na ordem do dia e nos ajudam a buscar saídas para impasses que vivemos hoje. As análises propostas pelo autor têm a perspectiva de um político e de um governante de esquerda, que observa e comprova que a política neoliberal praticada pelos EUA e Europa e imposta aos países latino-americanos não apenas vai contra os interesses das nações do continente como aprofunda a crise econômica e social”, observa. “Além disso, com grande maestria, Correa derruba o mito de que a economia é uma ciência objetiva, politicamente isenta”.
Livro de Correa (centro) foi escrito entre 1993 e 2005, mas ganhou versão brasileira neste ano, pela Boitempo
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A obra, que, segundo o autor, se nutre da reflexão acadêmica em torno da submissão do Estado e da sociedade equatorianas ao dogma neoliberal, é marcada por momentos onde Correa se distancia enquanto economista e acadêmico, outros nos quais se coloca como agente do processo histórico e aqueles em que se vê como capaz de arrancar o Equador das garras do neoliberalismo. Em um dos trechos que ilustram isso, ele relembra os bastidores de um empréstimo de 200 milhões de dólares do Banco Mundial que nunca chegou e o sorriso “entre irônico e pesaroso” do representante da instituição internacional esperando que Correa, à época ministro de Economia e Finanças, “entendesse como funcionava o mundo e quem eram os que nele mandavam”.
Dois anos depois daquele 2005, em que acabou renunciando ao cargo “por pressões dos organismos financeiros internacionais e dos tradicionais grupos de poder local”, Correa, já presidente, expulsou do país o representante do Banco Mundial e “seu sorriso irônico”. “Já era hora de que essa burocracia internacional aprendesse a nos respeitar”, reforça com ares de orgulho.
Apesar do tom às vezes panfletário, o livro faz um didático revisionismo da história do país ao confrontá-lo com o pensamento econômico de nomes como David Ricardo, Hans Singer, Raúl Prebisch, Joseph Stiglitz e Paul Krugman. Finalizada basicamente durante a volta de longas viagens de trabalho e nos três dias “providenciais” de descanso em Cuba após uma operação no joelho em 2009, a obra é divida em quatro partes: “Modernidade sem desenvolvimento” – onde explica como a queda dos preços internacionais do cacau levou o Equador a produzir banana nos anos 1950 –, “A entrega total do país” – em que classifica a “moda da dolarização” na região como mera ficção –, “Reparando injúrias” e “Rumo a uma nova política econômica” – onde explica o processo denominado “revolução cidadã”.
No prefácio elaborado especialmente para a edição brasileira, Correa mostra ter fé que toda a região aprendeu com os erros vividos durante a “longa e triste noite neoliberal”, mas alerta sobre a necessidade de um resgate do protagonismo do Estado: “Afinal, ele é o agente que canaliza a planificação de políticas públicas e que permite aplicar novas estratégias econômicas e de desenvolvimento, com o objetivo de lograr uma transformação social real”, afirma.
Ambicioso no bom sentido, o presidente equatoriano espera, por fim, que Equador – Da Noite Neoliberal à Revolução Cidadã contribua para a “verdadeira libertação” da América Latina através da compreensão das “barbaridades que fizeram com nossos países” para que erros do passado não se repitam.
Serviço
Livro: Equador – Da Noite Neoliberal à Revolução Cidadã
Autor: Rafael Correa
Editora: Boitempo
Preço de capa: R$ 38,00