Este texto foi publicado em 25 de agosto de 1999 no jornal Folha de S.Paulo.
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“Querido Jean Renoir, vou começar a narrativa do filme.” Ainda intimidado pelo aparelho, um ditadofone, Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944) recontou ao cineasta, diretor de “A Regra do Jogo”, a história de seu livro Terra dos Homens.
O projeto nunca foi realizado. Mas o autor de O Pequeno Príncipe registrou em discos (ainda não havia gravadores de fita na época) a sua “adaptação” para o cinema do romance, que Renoir (1894-1979) esperava transformar no “mais belo filme de sua vida”.
Os descendentes de Renoir guardaram os discos e, mais tarde, os doaram à Universidade da Califórnia. O conteúdo acaba de ser lançado na França – a transcrição completa, acompanhada de cartas e telegramas, foi editada pela Gallimard. Um CD traz a maior parte da gravação, editada em 69 minutos.
Renoir e Saint-Exupéry tinham em comum a paixão pela aviação. Durante a Primeira Guerra Mundial, ferido no front, ainda antes de realizar seu primeiro filme, o cineasta aprendeu a pilotar e passou a fazer voos de reconhecimento. “A Regra do Jogo” (1939) começa com um piloto deixando um avião e com Jean Renoir -também ator no filme- indo falar com ele.
Exupéry foi piloto profissional, atuando nas primeiras linhas de correio que passaram a ligar Europa, África e América do Sul -ele passou parte de sua vida em Buenos Aires. Sua obra é marcada por essa experiência, inclusive Terra dos Homens.
Os dois se encontraram num momento difícil para a França, em que o colaboracionismo com a Alemanha nazista ditava as regras do jogo político.
Cada um a seu modo, Renoir e Exupéry partiram para os EUA com os objetivos de continuar seus trabalhos e de usar o prestígio que haviam conquistado para defender a entrada dos americanos na guerra ao lado.
Não foi um encontro planejado. O acaso fez com que os dois, em dezembro de 1940, embarcassem no mesmo navio e na mesma cabine para os EUA. Ao fim da travessia do Atlântico, em 31 de dezembro de 1940, Renoir desembarcou com uma cópia do livro, premiado na França com o Grande Prêmio da Academia Francesa, e foi para Hollywood. Exupéry ficou em Nova York.
Em março, Renoir leu o romance e decidiu filmá-lo, embora soubesse que o livro não tivesse uma estrutura que pudesse ser facilmente transformada num roteiro. Ligou para o já amigo e pediu que preparasse a adaptação, enquanto tentava convencer produtores a adotar o projeto. Saint-Exupéry, eterno encantado pela tecnologia, começou as gravações.
A versão “cinematográfica” de Exupéry, que já escrevera o roteiro de “Anne-Marie” para Raymond Bernard, não se restringe ao contado no livro, uma reunião de textos. Aproveita também outras de suas obras, como “Vôo na Noite”, e cria novas cenas, ligadas por “flashbacks” e miragens.
Mas em nenhum momento foge à essência de Terra dos Homens, dedicado a seu amigo Henri Guillaumet – o homem aprendendo com as dificuldades que a natureza lhe impõe.
Nesse mundo, o avião é a ferramenta de reflexões, e os aviadores homens em constante superação de suas limitações. “Não sei se ele (o livro) é bom ou ruim, mas eu sei que ele é honesto”, escreveu Renoir a Exupéry em 1942, num tempo em que a honestidade humana era raridade.
Ser aviador era mais que profissão
“Era uma época em que os motores paravam todo o tempo”, diz logo no início das gravações Saint-Exupéry. O tempo todo, no caso, significava uma pane para cada cinco voos, em média. Ser aviador, mais do que uma profissão, era uma aventura.
Em Terra dos Homens, Saint-Exupéry lembra o dia em que Henri Guillaumet lhe mostrou o mapa da Espanha e, apontando os poucos pontos para aterrissagens forçadas, lhe explicou também o modo de pensar das pessoas que encontraria.
Saint-Exupéry viveu, em seus 44 anos, essa vida de aventura. De seu último voo só resta um bracelete de prata, no qual estão gravados o seu nome e o de sua mulher – Consuelo. O objeto foi encontrado na região de Marselha (sul da França) há um ano.
Com a declaração de guerra entre a França e a Alemanha, em 1939, Saint-Exupéry é convocado a integrar as forças francesas. Sua missão é treinar jovens pilotos. No início, é afastado das missões de guerra -devido a sequelas deixadas por inúmeros acidentes.
No ano anterior, ao tentar estabelecer uma linha de correio entre Nova York e a Terra do Fogo (fora diretor da Aeroposta Argentina, em 1929 e 30), sofreu um acidente na Guatemala e passou cinco dias em coma.
Em 4 de junho de 1943, com a França ocupada, Exupéry se integra, como capitão, às forças norte-americanas. Faz voos de reconhecimento até 12 de agosto, quando é colocado na reserva.
Menos de um ano depois, em maio de 1944, insiste e volta ao serviço militar. Ao fim de julho, um coronel o aconselha a parar pois já realizara em três meses o que seus colegas faziam em um ano de voos.
“Impossível. Continuarei com meus camaradas até o fim”, respondeu Exupéry. Em 31 de julho, faz seu último voo, a bordo de um Lightning P-38, um dos mais importantes aviões norte-americanos da época.
Haroldo Ceravolo Sereza
Nesse mundo, o avião é a ferramenta de reflexões, e os aviadores homens em constante superação de suas limitações