Artigo originalmente publicada no site Esquerda.net
“Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças dos nossos bisavôs, do avô paterno, dos nossos pais e de toda a nossa infância.” Assim arranca o conto “Casa Tomada”, o primeiro que o então desconhecido Julio Cortázar publicou, em 1946, na revista literária Anales de Buenos Aires, dirigida por Jorge Luís Borges.
Efe
Em Buenos Aires, mostra de fotografia “Julio Cortázar 1914-2014” faz homenagem ao centenário de nascimento do escritor
“Tenho orgulho de ter sido o primeiro a publicar um trabalho dele”, recordou Borges, que na época tinha 47 anos e já dera à estampa uma das suas obras maiores, “Ficciones”. “Lembro de um jovem alto que se apresentou no escritório e me entregou um manuscrito. Prometi que o iria ler, e ele regressou uma semana depois. O conto chamava-se 'Casa Tomada'. Disse-lhe que era excelente; a minha irmã Nora fez a ilustração”. Cortázar tinha 32 anos, escrevia desde criança, mas decidira só tornar público o seu trabalho quando achasse que o estilo já tinha atingido um nível aceitável.
“Devo ter pecado por vaidade, porque determinei uma espécie de teto, de nível muito alto, para começar a publicar, e tinha suficiente sentido autocrítico para ler o que ia escrevendo e dar-me conta de que estava abaixo”, explicaria Cortázar mais tarde.
Até àquela data, publicara apenas “Los Reyes”, um livro de poesia “meio clandestino”, mas escrevera um romance de 600 páginas, duas novelas, muitos contos e inúmeras poesias que nunca quis levar às editoras (na realidade, levou o romance, que foi recusado). “Sentia, sem saber muito bem porquê, que os meus primeiros contos não funcionavam e em vez de ficar a lamentar-me parecia-me mais lógico metê-los numa caixa ou deitá-los fora”, disse Cortázar na mesma entrevista.
“Até que um dia apareceu um conto que na minha opinião funcionava, esse trouxe outros – alguns que funcionavam, outros não – e outros que na sua maioria começaram a dar certo. Foi quando os dei à publicação.”
“O género fantástico, à falta de uma melhor designação”
Mesmo assim, foi um processo lento. Um ano depois, a mesma revista de Borges publicava “Bestiario”, e foi preciso esperar mais um ano para que saísse o terceiro, “Lejana”, na revista de artes e letras Cabalgata. Só em 1951, data da sua mudança para França, juntou os três contos, acrescentou mais cinco e publicou o primeiro livro, que recebeu o título “Bestiário”.
Era a primeira de muitas coletâneas de contos que Cortázar definia como pertencentes “ao género chamado fantástico, à falta de uma melhor designação”.
“Casa Tomada” passa-se num enorme casarão de família, onde vive um casal de irmãos que veem a sua residência ser paulatinamente tomada por entes nunca definidos, por vozes, por ruídos que forçam os irmãos a recuar, a ceder-lhes partes da casa, que fecham, para tentar deter a invasão.
“Bestiário” é a história de uma menina que vai de férias, como habitualmente, para a casa de uma família amiga que vive com um tigre. O quotidiano da casa é marcado pela necessidade de constantemente vigiar a fera, que se passeia livremente pelas salas da casa ou pelos jardins, de forma a que não haja encontros desagradáveis entre os humanos e o potencialmente agressivo felino.
Nos dois casos, como na maioria dos restantes contos, o fantástico de Cortázar (como, aliás, o de Borges) tem pouco a ver com o género que recebera o nome no século anterior, histórias góticas de terror, do horrível, centradas no “lado noturno” do homem. O fantástico (ou neofantástico, como lhe chamou o crítico literário Harold Bloom) de Cortázar mergulha o leitor num mundo em que o irreal invade e contamina o real. Uma espécie de deslocamento, como observa o escritor e jornalista uruguaio Omar Prego Gadea, numa longa entrevista a Cortázar. Na opinião de Gadea, em “Bestiario”, por exemplo, o elemento fantástico não é o tigre, mas sim a aceitação natural da sua presença e a adaptação de toda a rotina da família ao estranho convívio. Já em “Casa Tomada”, o clima fantástico instala-se devido à atitude dos irmãos, que em nenhum momento pensam em investigar a origem daqueles ruídos que vão assinalando a invasão da casa.
Hoje, “Bestiário” é sem dúvida um marco na literatura hispano-americana; mas na altura não foi assim visto. O livro de Cortázar ficava um pouco ofuscado por “Ficciones” e por “El Aleph”, de Jorge Luís Borges. Mas o jovem escritor tinha fé de que estava a fazer algo de original: “… tinha total certeza de que quase todas as coisas que mantinha inéditas eram boas, e algumas delas eram mesmo muito boas”, recordou, referindo-se a “um ou dois dos contos de 'Bestiário'”. E prosseguiu: “Havia outros, os admiráveis contos de Borges. Mas eu fazia outra coisa.”
Demoraria mais cinco anos a publicar um novo livro de contos, “Final del juego”.
A vida em França
Esses foram os anos em que se estabeleceu em França, país onde viveria pelo resto da vida, recebendo mesmo a nacionalidade francesa em 1981, outorgada pelo próprio François Mitterrand, sem porém renunciar à cidadania argentina.
Foi na verdade um regresso à Europa. De facto, Julio Cortázar nascera, “por total acaso” – como gostava de dizer – em Bruxelas, no ano que marcou o início da Primeira Guerra Mundial. O pai, Julio José Cortázar, era funcionário da embaixada, mas as vicissitudes da guerra forçaram a família a mudar-se para Genebra e depois para Zurique, onde aguardou o final do conflito. Em 1918, os Cortázar regressaram à Argentina, indo viver em Banfield, subúrbio de Buenos Aires. Logo o pai se separou e abandonou a família, e o pequeno Julio seria criado pela mãe, a tia e a avó. Formou-se em 1932 como professor primário e três anos depois como professor de Letras. Deu aulas em pequenas cidades do interior, Bolívar e Chivilcoy, e ensinou literatura na Universidade de Cuyo, mesmo sem ter qualquer título universitário. Em 1945, ano da eleição de Perón à Presidência da Argentina, desistiu da carreira docente e voltou para Buenos Aires, onde foi trabalhar na Câmara Argentina do Livro.
A oportunidade para a viagem a França surgiu com uma bolsa do governo francês e Julio chegou a Paris decidido a ficar. Levava apenas uma mala de roupa e um disco de jazz: “Stack O’Lee blues”.
Na época, conta, tinha “uma vida quase mínima, convencido a ser solteirão irredutível, amigo de muito pouca gente, melómano leitor de jornada completa, apaixonado pelo cinema, burguesito cego a quase tudo o que acontecia mais além da esfera estética”.
Arquivo pessoal
Conseguiu então um emprego como tradutor da ONU que, além de um salário regular, lhe permitiu viajar para muitos lugares e deu-lhe a oportunidade de realmente se estabelecer no país, como pretendia. E em 1953 abandonou as convicções celibatárias e casou-se com Aurora Bernárdez, como ele tradutora e argentina.
[Aurora Bernárdes e Julio Cortázar]
Pouco depois de “Final del Juego”, publicou uma tradução castelhana das obras completas de Edgard Allan Poe, até hoje considerada a melhor, naquela língua, do autor de “Histórias Extraordinárias”. Em 1959, saiu “Las armas secretas”, que inclui o famoso conto (ou novela) “El Perseguidor”, inspirado no saxofonista Charlie Parker.
E no ano seguinte viajou à Argentina e publicou o primeiro romance, escrito durante a viagem de barco: “Los Premios”. Essa seria também a sua primeira obra traduzida para o francês e publicada em 1961 pela editora Fayard.
O “boom” literário sul-americano
Os anos 60 foram também marcados pelo “boom” da literatura latino-americana, um fenómeno editorial e literário sem precedentes que marcou a década e pôs em destaque uma geração de escritores sul-americanos que até então tinha grandes dificuldades para fazer circular as suas obras.
Pela primeira vez, publicavam em editoras europeias e encontravam boa aceitação. O público, por outro lado, sentia-se atraído por autores que desafiavam convencionalismos estabelecidos e lançavam obras experimentais, algumas de caráter político que refletiam o clima do continente e o impacto da revolução cubana.
Entre os expoentes deste “boom” estavam Cortázar, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Carlos Fuentes. Destes, Cortázar era o mais velho e e o que vivia em Paris, e por isso a sua casa passou a ser um pólo para os escritores latino-americanos que viajavam à Europa.
García Márquez, por exemplo, dizia que desde a leitura de “Bestiario” compreendera que Cortázar era o escritor “que ele queria ser quando fosse grande”. Entre os dois havia 13 anos de diferença. O colombiano, que seria mais tarde Prémio Nobel, reconheceu que sentia verdadeira devoção pelo argentino. Antes de se tornarem amigos, García Márquez procurara Cortázar pelos cafés de Paris, na esperança de assistir ao seu processo criativo. “Alguém me disse que ele escrevia no café Old Navy, do boulevard Saint Germain, e lá o esperei várias semanas, até que o vi entrar como uma aparição”, recordou. “Vi-o escrever durante mais de uma hora, sem uma pausa para pensar, sem tomar nada além de meio copo de água mineral, até que começou a escurecer na rua e guardou a caneta no bolso e saiu com o caderno debaixo do braço, como o estudante mais alto e magro do mundo.”
Todos recordam a aparência jovem do autor de “Bestiario”, aparência essa que se devia à sua jovialidade, mas também à acromegalia, uma doença semelhante ao gigantismo, que se manifesta na idade adulta e que fazia com que nunca tivesse parado de crescer. Aos 60 anos, Julio tinha pés e mãos disformes e, ao morrer, com 70 anos, media 2,14m. Carlos Fuentes, outro que foi visitá-lo a Paris, conta que viu a porta ser aberta por um rapaz que aparentava ter 20 e poucos e a quem pediu que fosse chamar o pai. Mas era o próprio Cortázar, já com 50 anos de idade, que estava diante dele.
Mario Vargas Llosa e a segunda mulher, Patricia Llosa, José Donoso e a mulher, María Ester Serrano, Gabriel García Márquez e a mulher, Mercedes Barcha Pardo, em Barcelona nos anos 60. Foto de autor desconhecido, wikimedia commons.Mario Vargas Llosa e a segunda mulher, Patricia Llosa, José Donoso e a mulher, María Ester Serrano, Gabriel García Márquez e a mulher, Mercedes Barcha Pardo, em Barcelona nos anos 60. Foto de autor desconhecido, wikimedia commons.
Outro futuro Prémio Nobel, Mario Vargas Llosa, conheceu Julio em 1958, durante um jantar de amigos num restaurante de Paris, quando ficou sentado ao lado de “um rapaz alto e magro, de cabelos curtíssimos e grandes mãos que agitava ao falar. Tinha já publicado um livrito de contos e estava por publicar uma segunda compilação, numa pequena coleção dirigida por Juan José Arreola, no México. Eu estava prestes a publicar, também, um livro de contos e trocámos experiências e projetos, como dois jovenzinhos que fazem a sua velada de armas literária”, recordou o escritor peruano. “Só quando nos despedimos é que soube – pasmado – que era o autor de 'Bestiario' e de tantos textos lidos na revista de Borges e Victoria Ocampo, Sur, e o admirável tradutor das obras completas de Poe… Parecia meu contemporâneo, e, na realidade, era 22 anos mais velho que eu. Durante os anos 70, e em especial os sete que vivi em Paris, foi um dos meus melhores amigos e, também, algo assim como o meu modelo e o meu mentor. Eu admirava a sua vida, os seus ritos, as suas manias e os seus costumes tanto como a facilidade e a limpeza da sua prosa e essa aparência quotidiana, doméstica e risonha, que nos seus contos e novelas adotavam os temas fantásticos.”
O Perseguidor
“El Perseguidor”, o conto longo de 1959, vem marcar uma nova fase da literatura do escritor argentino. Até então, explicaria o próprio numa entrevista, os personagens dos seus contos podiam estar vivos, podiam comunicar alguma coisa ao leitor, mas não passavam de “marionetas ao serviço de uma ação fantástica”. Desta vez, a abordagem era diferente: o que fez neste conto foi o diálogo com um semelhante, “com alguém que não é um duplo meu, mas sim outro ser humano que não está posto ao serviço de uma história fantástica”. Neste caso, a história está determinada pelo personagem.
“El Perseguidor” baseia-se na vida do saxofonista Charlie Parker para criar o músico de jazz Johnny Carter, “um indivíduo que ao mesmo tempo tem uma capacidade intuitiva enorme, mas que é muito ignorante, primário. É muito difícil criar um personagem que não pensa, um homem que não pensa, que sente. Que sente e reage na sua música, nos seus amores, nos seus vícios, na sua desgraça, em tudo”.
O outro personagem é Bruno, jornalista e crítico de jazz numa revista especializada, autor de uma biografia do músico. Ele acompanha-o, protege-o, dá-lhe eventualmente dinheiro, mas por outro lado vive dele, parasita-o para aceder à sua própria glória como biógrafo do génio.
As intuições de Carter levam o músico a vislumbrar como que uma outra dimensão, algo que ele só verdadeiramente apreende através da música, uma realidade que às vezes define como “buracos”. “Na mão, no jornal, no tempo, no ar: tudo cheio de buracos, tudo esponjoso”, explica Carter. Um mundo ao qual ele tenta aceder sem sucesso e que não consegue explicar.
Johnny Carter tem também uma perceção muito particular do tempo, um tema que sempre aparece nas suas conversas com Bruno. Para ele, o tempo é algo indefinido, maleável, variável. Diz: “Como se pode pensar um quarto de hora num minuto e meio?” E, numa das passagens marcantes do conto, interrompe uma gravação com Miles Davis e começa a gritar: “Já toquei isto amanhã, Miles, é horrível, já toquei isto amanhã”.
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Bruno, o crítico, é o contraponto de Carter: racional, preciso, sabe bem o que quer, escreve uma boa biografia mas não consegue explicar por palavras a genialidade musical do biografado. Insiste que Carter lhe dê uma opinião sobre o livro e, depois de muito insistir, ouve o que não queria. “O teu livro é muito bom… Estás muito mais bem informado que eu, mas parece-me que falta alguma coisa… O que te esqueceste foi de mim”.
No final, Carter morre, e o crítico ainda vai a tempo de incluir uma nota necrológica na segunda edição da biografia, que considera, assim, completa. “Talvez não seja certo eu dizer isto, mas como é natural situo-me num plano meramente estético”, conclui Bruno, satisfeito por já se falar de novas traduções da sua obra para sueco e norueguês.
Quando acabou de ler “El Perseguidor”, Juan Carlos Onetti, escritor uruguaio amigo de Cortázar, esmurrou o vidro da casa de banho até parti-lo. Depois, escreveu-lhe uma carta (coisa que ele só fazia muito raramente) a manifestar o seu entusiasmo pelo conto.
O Jogo da Macaca
O editor português do mais famoso romance de Cortázar, “Rayuela”, decidiu dar-lhe o título de “O Jogo do Mundo”. Publicado em Portugal com mais de 50 anos de atraso, a escolha é muito discutível, já que a tradução à letra deveria ser “O Jogo da Macaca” (no Brasil foi publicado como “O Jogo da Amarelinha”, título correto, já que o jogo infantil chamado “Macaca” em Portugal tem o nome de “Jogo da Amarelinha” no Brasil). Cortázar pensara chamar o romance de “Mandala”, mas como lhe soava pretensioso optou pelo nome do jogo infantil cujo objetivo é chegar ao nono quadrado, o céu, através de saltos ao pé coxinho. O céu, neste caso, representaria a quimera do protagonista Horacio Oliveira que procura obsessivamente alguma coisa que não sabe definir.
“Rayuela” foi publicado em 1963 e transformou-se com rapidez num clássico e até num livro de culto, uma das obras-chave do “boom” latino-americano.
Escrita como um diálogo interior do protagonista Oliveira, a obra chamou desde logo a atenção pela forma. Com 155 capítulos, pode ser lida de maneiras diferentes, e o próprio leitor terá de escolher como o vai fazer:
– Leitura normal, sequencial, do capítulo 1 ao 56, e prescindindo “sem remorsos” do resto;
– Pela sequência sugerida pelo autor no início, seguindo uma tabela proposta pelo autor, que começa no capítulo 73 e segue para o 1, o 2, o 116…
No fundo, também pode ser lido pela ordem que o leitor desejar, até porque aconteceu a muitos perderem-se e só se darem conta, ao fim de muita leitura, que afinal tinham seguido uma ordem diferente da proposta.
O livro teve uma receção entusiástica na América Latina. Pela primeira vez, o próprio leitor ganhava um protagonismo que não tivera antes, onde o seu papel era unicamente deixar-se conduzir passivamente pelo autor. Agora era diferente, e por isso alguns críticos chegaram a dizer que “Rayuela” era uma antinovela. Cortázar preferia o termo “contranovela”, porque o seu objetivo não era destruir a novela (romance) como género, mas “ver de outra forma o contacto entre a novela e o leitor”.
Qualquer que seja o termo que se escolha, o certo é que veio responder ao que os ventos de mudança pediam.
A receção da crítica em França, porém, foi bastante fria, com Roger Caillois – um promotor da literatura latino-americana e o primeiro a divulgar Borges no país – a recusar-se a publicá-lo na Gallimard.
Em contrapartida, “Rayuela”, traduzido como “Hopscotch”, teve um acolhimento entusiástico nos Estados Unidos, recebendo em 1967 um dos recém criados National Book Awards para livros traduzidos. James Irby, na revista Novel, publicou um estudo longo em que vinculava Cortázar a Cervantes e dizia que o romance é “uma meritória renovação do louco empreendimento proposto há séculos em Espanha pelo maior dos antinovelistas”. Um crítico do The New Republic disse de “Rayuela” que era a “mais poderosa enciclopédia de emoções e visões que emergiu da geração de escritores internacionais do pós-guerra”.
O mexicano Carlos Fuentes, numa recensão publicada na revista norte-americana Commentary, recordou que o Times Literary Supplement de Londres considerara “Rayuela” como “a primeira grande novela da Hispano-américa”.
Militância política
Em 1961, Cortázar visitou Cuba e passou por uma nova mudança. “A revolução cubana, por analogia, mostrou-me então e de uma maneira muito cruel, e que doeu muito, o grande vazio político que havia em mim, a minha inutilidade política. Desde esse dia dediquei-me a documentar-me, a compreender, a ler: o processo foi-se fazendo paulatinamente e às vezes de uma maneira quase inconsciente, os temas onde havia implicações de tipo político, ou ideológico mais que político, foram entrando na minha literatura”, lembraria Julio na já citada conversa com Omar Prego Gadea.
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Cortázar com autores cubanos. “A revolução cubana (…) mostrou-me (…) o grande vazio político que havia em mim”
Para marcar essa nova fase, o escritor cita o conto “Reunión”, publicado em “Todos los Fuegos el Fuego” (1966) cujo personagem é o Che Guevara. “Esse é um conto que jamais teria escrito se tivesse ficado em Buenos Aires, nem nos meus primeiros anos de Paris”.
Na mesma conversa, Cortázar afirma que em muito pouco tempo surgiu nele aquilo “que atualmente se chama o compromisso… O que não quer dizer que vá ser um escritor de obediência, um escritor que se limita unicamente a defender a sua causa e a atacar a contrária, mas sim que vou continuar a viver em plena liberdade, no meu terreno fantástico…”
Um conto bastante representativo deste caráter é “Satarsa”, incluído no livro “Deshoras”, publicado em 1982, uma parábola sobre a ditadura argentina sem uma única vez serem citadas as palavras “ditadura” ou “Argentina”. Este é um regresso à linha de “Bestiario”, 30 anos depois.
Um grupo de fugitivos, perseguidos por causas políticas, refugia-se na fictícia Calagasta, onde partilha a miséria da população local e, tal como ela, dedica-se à principal ocupação local: caçar ratazanas que são vendidas a uma empresa e embarcadas para a Dinamarca. O líder do grupo, Lozano, é um fanático dos jogos de palavras, especificamente dos palíndromos. Diante do boato de que os seus perseguidores estão prestes a chegar a Calagasta, decidem fazer uma grande caçada para obter dinheiro suficiente para fugir.
Em 1976, Cortázar viajou à Costa Rica, onde se encontrou com Sergio Ramírez e Ernesto Cardenal e com eles realizou uma viagem clandestina, cheia de peripécias, à localidade de Solentiname, na Nicarágua. Logo após a vitória da revolução sandinista, fez várias visitas ao país e escreveu diversos textos, reunidos no livro “Nicarágua, tan violentamente dulce”.
Anos finais
Em 1981, Julio teve uma hemorragia gástrica que quase o matou. Mas, no ano seguinte, receberia um golpe maior, com a morte da sua terceira mulher, Carol Dunlop, mergulhando-o numa profunda depressão. Pouco depois, foi-lhe diagnosticada uma leucemia, que o mataria em 12 de fevereiro de 1984. Nos últimos meses, Aurora Bernárdez, a primeira mulher, acompanhou-o até ao fim. Foi sepultado no cemitério de Monptarnasse, no mesmo túmulo de Carol. Os visitantes costumam deixar sobre a lápide pequenas recordações, notas, flores secas, cartas, moedas, bilhetes de metro com os quadrados do jogo da macaca desenhados, um livro aberto ou pacotes de cerejas.
Numa entrevista que deu poucos anos antes, respondeu assim à questão de se considerava que o essencial da sua obra estava feito: “Nenhum escritor acredita que o essencial da sua obra está escrito porque não seria um escritor se pensasse assim. Quando termino um livro, tenho imediatamente a impressão de que poderia tê-lo escrito muito melhor, que uma enorme quantidade de coisas ficaram de fora, e que então, dentro de um certo tempo, poderia escrever outro que complete um pouco as lacunas do anterior, sendo completamente diferente. A noção de essencialidade não existe para mim”.
Julio Cortázar nunca parou de escrever.