Quando o poeta chileno Pablo Neruda morreu, em setembro de 1973, o Jornal do Brasil publicou uma matéria com a fotografia do enterro feita pelos olhos do fotojornalista Evandro Teixeira e do repórter Paulo César de Araújo. “Amigos enterram Neruda recitando seus poemas”, disse o artigo.
O registro do periódico é uma das peças na exposição “Chile 1973”, no Instituto Moreira Salles, em São Paulo, com imagens tiradas durante a ditadura militar chilena (1973-1990), e que teve estreia na última terça-feira (21/03).
“Desde o dia em que vi o corpo do Neruda estirado no chão da clínica Santa Maria [Santiago, capital do Chile], digo que ele estava tranquilo, era o corpo de uma pessoa que morreu sem problema algum. Mas ele foi envenenado, todo mundo sabia e sabe disso. Foi difícil provar porque foi muito bem feito, mas a verdade há de aparecer”, declarou Teixeira a Opera Mundi,
Teixeira foi o único fotojornalista que registrou Neruda ainda na clínica, logo após seu falecimento.
Apesar das indicações prévias de que Neruda teria morrido por complicações de um câncer de próstata, exames recentes apontam a existência de substâncias químicas na ossada do escritor, indicando possível envenenamento pela ditadura de Augusto Pinochet, ao qual o poeta fazia grande oposição e planejava uma viagem ao México para denunciar o golpe de Estado chileno à imprensa internacional.
Em fevereiro deste ano, legistas europeus e canadenses apresentaram para a família do poeta vencedor do Nobel de Literatura novos resultados sobre sua morte.
Na inauguração desta terça, o curador da exposição, Sergio Bugi, afirmou que a junta militar chilena tentou se “apossar” do corpo de Neruda, afinal, segundo ele, “sabiam da importância e necessidade de um tributo” ao poeta.
Por sua vez, Teixeira também declarou que, ao ver a homenagem sendo formada, Pinochet chamou uma coletiva de imprensa na tentativa de esvaziar o velório.
Fotojornalista Evandro Teixeira acompanhou velório de Pablo Neruda a convite da esposa do poeta, Matilde Urrutia. Crédito: Exposição do Instituto Moreira Salles (IMS) – Evandro Teixeira/Foto Duda Blumer
Isso ocorreu após a morte de Neruda, que, mesmo com tentativas dos militares em impedir que o corpo fosse velado em Santigo, o enterro do poeta foi um grande ato de manifestação contra a ditadura de Pinochet. Esse momento foi registrado única e exclusivamente por Teixeira, que conseguiu acesso ao local em que o corpo estava, ao lado da esposa Matilde Urrutia.
A homenagem contou com a presença de militantes da esquerda de diversos países latino-americanos, familiares e amigos do poeta. A multidão, que ignorava o toque de recolher do regime militar, entoava poemas do falecido, que além de escritor, teve vida política ativa no Chile.
Todos esses detalhes foram registrados por Teixeira, que foi convidado por Urrutia para presenciar todo o velório de Neruda: “tua presença aqui é muito importante”, destaca a descrição da exposição sobre o momento em que o fotógrafo recebeu não apenas a permissão, mas o convite para acompanhar a homenagem.
Exposição do Instututo Moreira Salles (IMS) – Evandro Teixeira/Foto de Duda Blumer
Multidão se reúnem no velório de Pablo Neruda para prestar homenagem ao poeta chileno em 24 de setembro de 1973
A ditadura chilena por Evandro Teixeira
Reunindo 160 fotos sobre a ditadura de Pinochet, com diversos momentos, seja o bombardeio ao Palácio de La Moneda ao campo de prisão e tortura que o Estádio Nacional foi transformado, a exposição de Teixeira no IMS mostra com ineditismo os registros do fotojornalista que chegou ao país sul-americano e ficou sob vigilância militar com dezenas de outros correspondentes internacionais.
Outro destaque da mostra é justamente a transformação do Estádio Nacional em local de repressão, principalmente contra os estudantes chilenos.
Na exposição, é possível entender o papel do Coronel Jorge Espinoza Ulloa durante uma visita da imprensa internacional ao local. A ideia do regime era construir uma narrativa falsa sobre os crimes contra os direitos humanos que ali ocorriam.
Fotografia de Evandro Teixeira no Estádio Nacional do Chile, onde estudantes foram presos e torturados pelo regime militar. Crédito: Exposição do Instituto Moreira Salles (IMS) – Evandro Teixeira/Foto Duda Blumer
Apesar da tentativa dos militares, Teixeira já conhecia a estrutura do estádio por ter realizado a cobertura da Copa do Mundo de 1962 e conseguiu assim acesso aos porões do local.
“Foi porrada. Ele ´[Ulloa] nos levou ao gramado do estádio pra mostrar que os estudantes eram bem tratado, e estavam ali por questão de informações e logo sairiam. Mentira. Ele nos mostrou pra tentar cobrir o que estava no porão, onde morreram todos, aconteceu um massacre. Eu tentei descer e fazer algumas fotografias e foi uma loucura, foi rápido, como eu conhecia o Estádio Nacional, tentei fazer isso e dei sorte, mas a situação poderia ter sido bem pior”, declarou Teixeira a Opera Mundi.
Democracia na América Latina
O Instituto Moreira Salles, além de expor os registros de Teixeira sobre o golpe militar no Chile, também organiza uma exposição simultânea sobre demais ditaduras na América do Sul, como o regime militar brasileiro (1964-1985), intitulada ‘Papel, tinta e chumbo: fotolivros e ditaduras sul-americanas’.
Questionado pela reportagem sobre a importância de uma exposição evidenciando as ditaduras militares latino-americanas no século XX, Teixeira faz referência ao momento política enfrentado pelo Brasil sob o governo de Jair Bolsonaro até 2022. “Até o ano passado a situação no país era terrível, não tem explicação. A invasão no Congresso [em 8 de janeiro] foi uma das coisas mais terríveis que já vi no Brasil”, comenta.
Já a organização da exposição declarou que “a data impõe memória e reflexão, não apenas para honrar quem resistiu e lutou nesses tempos difíceis, mas também porque, em nossos países, o desejo de democracia se vê novamente às voltas com ameaças que não têm nada de fictícias”.
Serviço
Exposição Evandro Teixeira, Chile 1973
De 21 de março a 30 de julho.
Instituto Moreira Salles, Avenida Paulista, 2424, São Paulo.
Entrada gratuita
Terça a domingo e feriados (exceto segundas), das 10h às 20h
Exposição Papel, tinta e chumbo: fotolivros e ditaduras sul-americanas
De 21 de março a 11 de junho
Instituto Moreira Salles, Avenida Paulista, 2424, São Paulo.
Entrada gratuita
Terça a domingo e feriados (exceto segundas), das 10h às 20h