Foi o quarto filme brasileiro a ser exibido no Festival de Cannes. Selecionado na mostra Un Certain Regard, Crowrã, A Flor do Buriti, sobre a resistência do povo Krahô do norte de Tocantins, foi recebido com entusiasmo pela plateia nessa terça-feira (23/05). A direção é da dupla luso-brasileira João Salaviza e Renée Nader Messora. Em 2017, os diretores venceram o Prêmio Especial do Júri, na mesma mostra, com A Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, também sobre os Krahô.
A luta pela terra e pela defesa das florestas dos indígenas brasileiros ganha visibilidade internacional nessa edição do Festival de Cannes. Depois de eventos que reuniram líderes indígenas como o cacique Raoni ou a ministra Sonia Guajajara, nesta terça-feira a resistência do povo Krahô foi um dos destaques da seleção.
Renée Nader Messora ficou contente com a acolhida calorosa do filme, que foi aplaudido durante vários minutos na estreia em Cannes. “Estou contente principalmente porque eu consegui sentir a potência que a presença de Patpro, Hyjnõ e Ihjãc, que são os nossos amigos do Tocantins, faz ecoar em uma sala de cinema cheia como foi aqui”, disse a diretora brasileira.
A Flor do Buriti é fruto de uma colaboração de muitos anos dos diretores com a comunidade indígena de Pedra Branca. “É importante sublinhar que o nosso projeto com os Krahô não é um projeto artístico, é um projeto de vida”, salienta João Salaviza.
O filme foi construído em parceria com os Krahô, em um processo coletivo. O roteiro é assinado por João Salaviza e Renée Nader Messora e pelos indígenas Ilda PatproKrahô, Francisco HyjnõKrahô, Ihjãc Henrique Krahô, que também vieram a Cannes para a pré-estreia mundial na mostra Un Certain Regard (Um Certo Olhar).
Memória coletiva
A filmagem, atravessada pela pandemia de covid-19, durou 15 meses, com uma equipe muito reduzida. A narrativa, não linear e sem imagens de arquivo, aborda os últimos 80 anos da história dos Krahô, que vivem no norte de Tocantins. A reconstituição de fatos históricos, do massacre dos Krahô em 1940 até a resistência ao governo Bolsonaro, é feita e interpretada pelos indígenas a partir da memória compartilhada por eles. “É um filme mais amplo, mais plural, que tenta dar conta da potência de ver uma comunidade coletivamente, a pensar e a agir”, diz o diretor português.
Twitter/Festival de Cannes
Selecionado na mostra Un Certain Regard, ‘Crowrã, A Flor do Buriti’, sobre resistência do povo Krahô do norte de Tocantins
“A narrativa no nosso filme, ela vai sempre ser trabalhada com as pessoas, que trazem muito das suas vidas, das suas relações, das suas crenças e da maneira como elas vêm o mundo para o filme. Eu acho que essa é a base da nossa maneira de trabalhar”, completa a cineasta brasileira.
Ao fazer esse resgate da história Krahô, o longa aborda um dos temas mais urgentes para todos os povos indígenas do Brasil: a demarcação de terras e a revisão do marco temporal. “O filme não podia ser indiferente do que estava a acontecer nesses 15 meses, no auge do bolsonarismo. Enquanto estávamos a filmar, o cotidiano era invadido por todo tipo de eventos, de violências, de perigos, de medo, de anseios, de memórias muito traumáticas que voltavam a surgir”, conta João Salaviza.
Uma das últimas sequências do filme é a participação de representantes do Krahô no acampamento terra livre durante o governo Bolsonaro. A última cena é o nascimento de “mais um guerreiro” na comunidade.
Produção emblemática
Julia Alves, uma das produtoras, diz que a produção de A Flor do Buriti é emblemática do desmonte do governo Bolsonaro no setor da cultura. O filme participou do edital de um fundo da Ancine de coprodução entre Brasil e Portugal, foi contemplado em 2019, mas só recebeu os recursos em 2021.
“É o ciclo do governo Bolsonaro, participamos do último edital desse fundo que foi descontinuado. Estar aqui é muito importante, num momento que aponta para novos caminhos, não só na cultura, mas nas políticas de demarcação das terras indígenas”, afirma a produtora, informando que a equipe veio a Cannes com o apoio do Itamaraty e do Projeto Paradiso do governo brasileiro.
“É muito importante que Cannes receba essa comitiva e abra espaço para essa visibilidade fora do Brasil também, porque é uma luta que tem que ser travada ao nível global. A demarcação das terras indígenas não tem a ver só com os povos indígenas, ela tem a ver com a nossa sobrevivência no planeta, enquanto humanidade”, pontua Renée Nader Messora.