Foi antropologicamente pitoresca. Cheguei com as mãos geladas. Ansiedade: uma das últimas a estar presente. Havia muita gente nativa. Mais do que presenciei em todos esses últimos nove meses e cinco dias, morando em uma cidade de cerca de 24 mil habitantes, segundo meu conhecido (e vizinho) que trabalha no IBGE.
24 mil habitantes não é muita coisa, perto das cidades brasileiras que normalmente tem muito mais do que isso de população. Aqui, todo mundo pelo menos já cruzou com todo mundo na rua. Mesmo sendo tão pouca gente, parecia que toda a população noturna estava ali, reunida, para beber sobre o leito de morte do Bar dos Artistas, que agonizava frente ao seu último fim de semana aberto.
Gosto de chegar sozinha nos lugares. Chegar acompanhada implica em dar continuidade à relação estabelecida com quem já estava me acompanhando, antes de chegarmos. Assim, é bem provável que, chegando acompanhada, continue desempenhando o mesmo papel social para aquela pessoa, mas em um ambiente diferente do anterior. Acompanhada, corro o risco de não desempenhar outros papéis que adoraria interpretar, simplesmente pelo fato de já ter me comprometido com o papel anterior.
Eu sei que isso é se cobrar muito. Mas quem disse que eu vim aqui a passeio? Gosto de estar em ambientes sociais, em contato com muita gente, e por isso acabo cedendo a alguns caprichos para satisfazer o meu prazer.
Só que é muito difícil – principalmente em uma cidade em que todos se conhecem, ou pelo menos já se cruzaram na rua -, esse tipo de “compromisso descompromissado” acontecer. Se em uma cidade grande já desempenhamos papéis fixos e praticamente imutáveis como “chefe”, “professora”, “roomate”, “esposa”, imagine o quão engessados se tornam estes papéis em comunidades em que todos precisam de validação social mais íntima para que se estabeleçam relações de confiança, mesmo que mínima.
Voltando ao bar dos artistas. Gosto de chegar lá sozinha porque já conheço a grande maioria dos presentes, e porque assim não sinto uma espécie de atrelamento a quem me acompanhou de casa até o lugar. É como se eu tivesse marcado de encontrar, ali mesmo, todas aquelas pessoas, que acabam se fechando em grupos de duas a cinco (contando as crianças, obviamente). Então, eu passeio pelas mesas e pelos círculos, cumprimento e, se alguém puxar conversa, eu fico mais um pouco. Amo essa liberdade de estar com quem quiser e ir embora quando eu quiser.
Enfim. Modernidade líquida, né mores? Que bom que temos a possibilidade de escolha: certamente você já foi criança e se viu em uma posição de escolher se vai brincar no balanço ou no escorregador, e certamente já baseou suas escolhas de acordo com as pessoas que estavam brincando naquele momento no balanço e no escorregador. No fim, é tudo a mesma coisa. Eu só faço parte do grupo dos que não querem escolher um favorito de acordo com ideias pré-concebidas. Gosto do balanço e do escorregador nas mesmas proporções. Minhas prioridades são definidas de acordo com cada contexto.
Uma amiga de família me convidou para sentar na mesa. Com ela, um conhecido forasteiro.
A banda começou a tocar forró. É claro que dancei. Gosto de dançar com minha amiga de família, meu amigo maravilhoso e meu amigo pingo de ouro. Me derreto quando danço com a amiga de família. Ela tem a melhor malemolência. Dança agarradinha, os corpos gingam juntos. Minha amiga realmente sente prazer em dançar. Por isso, dançar com ela é uma das coisas mais gostosas para se fazer em público nesta cidade.
Com o amigo maravilhoso a dança é um pouco mais durinha, mas mesmo assim, não deixa de ser uma delícia: é algo como encontrar a sua sombra junguiana para finalmente atingir um equilíbrio ao ponto de deixar aflorar, através da dança, a sua persona mais divina.
Uma das coisas que mais gosto neste amigo maravilhoso é passar tardes conversando sobre a vida, as coisas que temos de fazer, o que vamos vender e vamos comprar. Até tivemos juntos um negócio de chocolate baiano. Nunca passou do plano das ideias. No forró, a gente se encaixa. Só levei pisão dele no Carnaval. Não estávamos dançando.
Com o meu amigo pingo de ouro, divido meus momentos mais saudáveis: já chupamos mangas com caldos dourados e polpa macia, já fomos beber água no centro da terra, já viajamos em dias de sol, já nos alimentamos de vegetais preparados na antiga senzala e também já nos empanturramos de bolo de chocolate. Nunca o vi comendo carne. Dançamos como se estivéssemos numa aula de escola de dança ou no Canto da Ema ou em alguns destes lugares em que os casais dançam tão bem que a gente até pensa que eles estão fazendo aquilo tudo só para chamar atenção e provocar inveja de quem não sabe dançar.
Não me importa se as pessoas reparam, mas quando danço com meu amigo pingo de ouro, eu até tiro as sandálias. A gente dançaria até perder o fôlego – isso se fôssemos doentes. Mas, como somos saudáveis, sempre lembramos de respirar e assim podemos passar muito tempo dançando e respirando e sorrindo um para o outro neste ritmo frenético.
Voltei à mesa. Ainda tinha cerveja minha. A primeira garrafa. Apareceu uma moça, negra, moradora da cidade. Nunca havia falado com ela. É muito gostoso, depois desses 9 meses e cinco dias, ainda encontrar pessoas diferentes à noite. Normalmente, neste primeiro contato, não temos nada de preconceitos, uma sobre a outra (isso quando a rádio peão já não passou nos nossos ouvidos. Enfim, nunca tinha ouvido falar dela. E acho que ela também nunca tinha ouvido falar de mim).
Quando encontramos desconhecidos, a conversa flui não de onde parou, mas de onde começa. Prefiro conversas recém-começadas a conversas com fundos quixotescos e dramalhões, típicas dos encontros que continuam de onde pararam – que, na maioria das vezes, é a mesma coisa que chegar acompanhada. Prefiro conhecer pessoas novas do que repetir padrões com pessoas repetitivas. Não considere que assim eu sou superficial. As pessoas não são superficiais. Elas demonstram toda a sua essência em simples atos cotidianos, como abrir uma garrafa de cerveja. O modo que uma pessoa abre uma garrafa de cerveja já diz muito sobre ela. Diz sobre a sua essência. Agimos sempre baseados nela.
De volta ao bar. A moça negra, moradora da cidade e recém-conhecida havia acabado de comprar na distribuidora duas latas de uma cerveja fabricada em Petrópolis (essa cerveja é uma das mais consumidas por aqui. Não sei se é porque a cidade é histórica e se parece bastante com Petrópolis, além de ter sido uma das queridinhas dos antigos monarquistas donos do Brasil, ou se é porque essa cerveja está dominando os bolsos da classe média nacional, fazendo concorrência à cerveja verde que parece de comunista).
Uma das latas que a moça trazia era de pilsen. A outra, de cerveja preta. Me surpreendeu quando ela pediu um copo no bar e misturou as duas bebidas. Eu, que havia acabado de misturar a cerveja comunista com a monarquista e estava me achando A subversiva, naquela hora, me senti vencida. A mistura que ela fez desceu afagando todos os choros da garganta, meio encorpada, meio suave, como um bolo de fermentação ideal, um chop tirado no Bar do Leo: não importa a procedência, o que importa é o impacto. Nuvem.
O conhecido forasteiro me chamou para dançar. Neguei, com medo de a dança ser ruim, mas depois de três pedidos, acabei aceitando. Uma pessoa que tem vergonha de dançar nunca convida alguém para dançar. Se ele me chamou uma vez, pensei “hum, ele é ousado. Acabou de chegar na cidade e já quer dançar forró. Melhor não. As pessoas da cidade grande às vezes ficam muito ousadinhas quando pousam numa cidade pequena”.
Quando me chamou pela segunda vez, pensei “hum, quer dizer então que ele não é só ousado. Também é confiante. Tem certeza de que sabe dançar. Eu não sei tanto assim. Não vou, ele vai querer dançar como se estivéssemos numa aula de escola de dança ou no Canto da Ema ou em alguns destes lugares em que os casais dançam tão bem que a gente até pensa que eles estão fazendo aquilo tudo só para chamar atenção de quem não está na dança, e será terrível. Vai virar um climão chato e eu precisarei deixar a mesa e o papo interessante que estava tendo com a amiga de família e a moça da nuvem de cerveja. Vai ser muito trabalho para pouco resultado”, pensei. E recusei.
Pausa para uma trivia: o conhecido forasteiro me diz que a primeira mulher a lançar um livro no estado de Goiás era negra e morava na cidade. Não me pergunte quando: o quando nem importa, depois de uma informação dessas.
Levantei para buscar mais uma garrafa. E fui girar um pouco. Dar uma volta ao mundo, respirar. Abracei e beijei as pessoas mais queridas, levantei e me sentei e me levantei mil vezes da cadeira. Quando ia me sentar novamente, ele me chamou para dançar. Aceitei e a dança foi boa. Nada frustrante. Noite perfeita.
De volta à mesa, pedi silêncio. Porque queria observar. Uma mãe dançava com a filha, um casal de conhecidos também dançava. Acho que era o meu vizinho do IBGE. Ao fundo, as minhas amigas arquitetas. Elas também gostam muito de observar. E agem reservadamente. Sabem que arquitetar é muito mais divertido do que assinar.
Todos os artistas da cidade estavam ali. Trocaram alguns integrantes da banda. Começam a tocar blues e rock. Uma garota no vocal. Expressiva, maravilhosa. As pessoas começam a recitar poesia. O patrão pega o microfone para agradecer a presença de todos e a resistência de quem frequenta o Bar dos Artistas. Tudo é interpretado de forma tão genuína, tão viva e tão presente que chego a me comover. Fico feliz por estar tão bem, entre as pessoas, e triste por saber que esse período estava chegando ao fim.
Ando me comovendo facilmente. Talvez algumas feridas profundas estejam se reabrindo, como os dramalhões típicos das melhores novelas mexicanas, nos quais me enfio sem saber ao certo como é que fui parar no elenco – se foi porque gosto de histórias ou se as pessoas estão obcecadas em me ver interpretando as suas cenas em que elas são atores principais. Acho que é uma mistura das duas coisas. É um jeito divertido de passar o tempo.
Então choro. Choro sorrindo, porque sei que a cura está aqui, também. Meu amigo pingo de ouro me disse para eu não interpretar tanto. Mas como é possível não interpretar, com tantos sinais externos? Ali era onde eu queria estar, aquela noite. Foi minha escolha. A última noite de um ciclo que se encerra. Queria me despedir de todos, como se eu estivesse me despedindo. Porque estava mesmo. Eu não estou mais aqui. Já me fui.
Conhecido forasteiro me acompanhou até a casa.
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