O romantismo foi pródigo em invenções — e urna das que mais perduraram foi a do indianismo. “O primeiro habitante” passou a encarnar urna espécie de cavaleiro medieval — como em “O Guarani” — ou mãe geradora dos brasileiros, depois de ceder gentilmente seus encantos ao português — como é o caso de “Iracema” —, para citar apenas o mais expressivo escritor do romantismo brasileiro, José de Alencar. Mas esse não era o único índio a ocupar o imaginário brasileiro: havia também espaço para o seu antípoda, que é o do ignorante, irracional, violento, animal em todos os sentidos. As diferentes nações indígenas foram entendidas das duas formas, num movimento pendular que pode ser percebido até antes dos românticos: nos Séculos XVI e XVII, os canibais tupis eram encarados pelos colonizadores como civilizáveis, ao contrário dos tamoios, apesar de os últimos não utilizarem em seus ritos carne humana.
Os dois modelos, embora pareçam distantes, tocam-se em um ponto: como acreditava o filósofo Hegel, não havia história para os índios. Esses formavam sociedades paradas no tempo, como se o fato de não possuírem escrita os tornassem incapazes de aprender e transmitir suas experiências.
O índio era tão imaginário que sua presença, seu apresamento e mesmo o caráter mestiço da população brasileira foi capaz de conviver com a ideia de que a porção portuguesa do continente formava um grande vazio territorial a ser ocupado pelo colonizador. Em “As Guerras dos Índios Kaingang — 1769-1924” [Editora da Universidade de Maringá, 1994], Lúcio Tadeu Mota mostra como a elite paranaense construiu uma narrativa que ignora a presença dos também chamados coroados, embora a palavra conquista expressasse o processo muito melhor do que a palavra ocupação, que domina as narrativas da história do Estado.
Os índios lutaram constantemente contra a presença branca por mais de 150 anos, utilizando as mais sagazes armadilhas para dificultar a vida dos agressores. Guias traidores, cercos inesperados, massacres de colonos invasores: nada disso aparece na historiografia tradicional do Estado, que louva a “ocupação” de um planalto vazio.
Tal como esse estudo faz com os caingangues, Lúcia Murat, em “Brava Gente Brasileira”, desmitifica os guaicurus, embora os homenageie e refaça a história da conquista do seu território. Nessa perspectiva histórica, os índios estão longe dos ingênuos [ou trouxas, dependendo da perspectiva] bons selvagens e dos selvagens cruéis. Aprendem com a chegada dos brancos, não porque os portugueses e espanhóis são mais avançados, mas porque o contato é um fato de que extraem conhecimento. Mudam suas atitudes, domam os cavalos, planejam armadilhas; cortam as mãos dos inimigos como vingança. São tão capazes de surpreender quanto os portugueses, às vezes até mais. Se perderão a guerra, essa é uma consequência de terem decidido fazê-la, de não terem aceitado a dominação. A opção, no entanto, não elimina a violência que significou a chegada dos europeus. Tudo, como diria a velha coleção, é história.
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Atriz Luciana Rigueira interpreta a personagem Ánote no filme ‘Brava Gente Brasileira’
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha lembra, em “História dos Índios no Brasil” [Companhia das Letras, 1992], que o branco, nas mitologias indígenas, muitas vezes surge quando um elemento do grupo indígena faz uma escolha: “Os craôs e os canelas, por exemplo, quando lhes foi dada a opção, preferiram o arco e a cuia à espingarda e ao prato”.
Os cintas-largas, de Rondônia, contam uma história em que eles são agentes de pacificação dos brancos. O filme de Lúcia, assim, expressa uma difusão de um entendimento mais amplo da questão indígena no País — e, consequentemente, de sua história. Quem já assistiu a Anchieta, José do Brasil, de Paulo César Saraceni, verá a diferença.
Em 1988, a Constituição trouxe uma série de direitos para as nações indígenas, que já haviam iniciado um processo de organização política. A demarcação das terras e a ampliação da cidadania aos índios e a aceitação de suas línguas foram consequência do “lobby” indígena, que também passou a exigir direitos universais, como escolas e postos de saúde. Uma das consequências práticas das medidas foi o crescimento das populações e mesmo uma busca de redefinição como indígenas de comunidades que se acreditava “aculturadas”. Etnias “extintas”, como a tupinambá, contam hoje com comunidades que reivindicam a denominação. E o ensino de computação convive nas tribos com o do português e das línguas tradicionais — não, é claro, sem tornar evidentes novas contradições.
Se houve história quando os portugueses chegaram, também houve antes. A Mostra do Redescobrimento, em 2000, buscou na arte indígena o início da história da arte brasileira [e, por extensão, do País], mas não no sentido tradicional, como se fosse uma raiz da qual somos totalmente egressos. Lúcia, mostra que também o cinema aprendeu que a ideia de que o Brasil começa apenas em abril de 1500 é tão absurda quanto acreditar que ele poderia ter existido se os portugueses aqui não tivessem chegado.
Antropólogos, mas sobretudo os índios, ajudaram a reescrever essa história. Um dos exemplos foi o bate-boca entre Henrique Suruí e o presidente do Congresso, Antônio Carlos Magalhães, quando fotógrafos e cinegrafistas registraram a destemida atitude do índio. Essa nova história também passa pelo discurso do índio Matalauê, durante missa comemorativa dos 500 anos do Descobrimento, na presença do vice-presidente Marco Maciel.
A repressão às manifestações indígenas nessas “comemorações”, no entanto, e a prioridade dada pelo governo brasileiro a Portugal mostram que essa nova história ainda compete com a cronologia oficial do País, que vai de Pedro Álvares Cabral a Fernando Henrique Cardoso, passando pelos Pedros I e II, barão do Rio Branco, etc. São posições em conflito; o filme de Lúcia está do lado daqueles que haviam sido, talvez precipitadamente, considerados completamente vencidos.
Texto originalmente publicado no jornal ‘O Estado de S. Paulo’, em 28 de janeiro de 2001.