Parte 1: “Linha tênue”
Essa foi a metáfora que me inspirou a ir até a Venezuela e realizar um ensaio fotográfico sobre o cotidiano em Caracas. Fotografar o dia a dia na/da capital venezuelana foi uma forma que encontrei de documentar e contar algumas histórias de alguns venezuelanos que, por diversas razões, ficaram no país.
A série que apresento, em parceria com Opera Mundi, foi produzida no mês de setembro de 2019 e foi construída de modo independente, com patrocínio parcial conquistado por apoiadores do projeto Venezuela em Fotos. Pessoas que, assim como eu, queriam ver como era Caracas fora das imagens dos jornais. Pois, apesar de reconhecermos que as fotografias de grandes acontecimentos sociais são fundamentais para a memória histórica, há uma importante parte dessa história que muitas vezes é esquecida: o cotidiano. É ele que conta sobre uma época, um povo, uma cidade.
As fotos da série não dizem apenas sobre a capital venezuelana, mas sobre mim. Durante os primeiros dias em Caracas, tive muita dificuldade de fotografar nas ruas. Além do fato de ser estrangeira, o que, de cara, produz outro efeito de sentido, sou mulher e estava com uma câmera. E isso, acreditem, influencia em tudo. Fotografar na rua, para mim, exige tempo, paciência e tranquilidade…tudo que eu não estava sentido.
No começo dessa jornada fotográfica, eu estava muito afetada pelo discurso paranoico do medo, produzido em mim antes mesmo de eu chegar à Venezuela. Em Caracas, esse discurso aumentou. Não por acaso. A cidade, que sempre foi conhecida por sua violência urbana, numa situação de crise social, como a atual, me pareceu ainda mais violenta. Isso refletiu muito no meu posicionamento na hora do clique. Muitas fotos foram feitas com celular, uma forma de me manter segura, na medida do possível, e também uma forma de interagir com a rua de um jeito menos invasivo, como às vezes uma câmera pode produzir.
Essa sensação de medo, projetada antes de eu chegar ao país, se materializou no meu corpo. E o corpo, para um fotógrafo, é a seta do seu olhar. Ficar com medo, sentir-me vulnerável, só poderia produzir imagens turvas, pouco criativas e, mais ainda, clichês. Porque os clichês são uma espécie de escudo, uma zona de conforto que nos mantém “seguros”.
Com o passar dos dias, porém, eu percebi que estava em uma armadilha. O discurso do medo havia me pegado. E eu caí na cilada da câmera escondida e da foto-denúncia. Quando percebi isso, mudei minha posição. Decidi fazer o que sempre faço, mas que, por alguma razão, havia me esquecido: conectei-me com as pessoas. Quando isso ocorreu, tudo fluiu. Para melhor.
Eu conheci lugares que só foram possíveis serem fotografados porque eu me “contaminei” de gente. Decidi chegar perto, conversar, entender. E ouvi de tudo. Esse “tudo”, na medida do possível, está nas minhas imagens.
Ao final da minha vivência em Caracas, constatei algo: a Venezuela é, surpreendentemente, o país da América do Sul mais parecido com o Brasil. Talvez por essa relação de espelho haja tantos brasileiros que rejeitem os venezuelanos. Não deve ser fácil lidar com a imagem refletida em tempos de crise.
Para entender a Venezuela nesse momento histórico, é preciso querer ouvir outras versões que há sobre o país, não o limitando a chavistas e opositores e, ao mesmo tempo, não esquecendo que, sim, há essas duas forças que duelam. Porém, entre uma coisa e outra, há muitas camadas.
Para ouvir as outras versões dessa história, é preciso querer ouvi-las.
Dez dias em Caracas é um jogo de imagens que tenta desestabilizar a ideia da vida como fragmentos, e tenta mostrá-la como movimento, como dialética. Contrastes que se mesclam com cenas nítidas, porque estar em Caracas nesse momento é ver e, mesmo com tudo tão nítido, continuar sem conseguir enxergar tudo.
Prédio abandonado por falta de condições estruturais, na avenida Urdaneta. Torre David, região central de Caracas
Sapateiro atende em um estabelecimento que lembra uma barraca de jornal
Ruas de La Pastora, o primeiro bairro de Caracas
Todo retrato é um elo, instante efêmero e eterno. Moradora do bairro de Petare, a maior favela de Caracas
Homem mostra seu documento para mostrar que, apesar do nome de origem alemã, ele é venezuelano
Amanda Cotrim
População assiste a disputa de dança, que ocorre na praça Bolíviar, centro de Caracas, todo sábado
Vendedor de Licor é um dos poucos comércios abertos no sábado, no bairro de Chacao, região de classe média
Metrô, o transporte mais popular de Caracas. Apesar de a passagem ser considerada irrisória, 40 bolívares (um dólar vale 20 mil bolívares), por falta de estrutura, como bilhetes, ar condicionado, limpeza e etc, o metrô tem funcionado com a catraca livre
O que ela olha? Centro de Caracas. Setembro de 2019
Comerciante exibe o pôster de Hugo Chávez: “Eles querem que você não fotografe aqui porque não querem mostrar que há comida”
Protesto no bairro de Chacao, de classe média e média alta, pede a liberdade do Padre Elias