Parte 3: Retratos da Venezuela
Entrei na Venezuela com a imagem de que encontraria em Caracas uma cidade dividida. Mas não sai com essa imagem. Apesar de a divisão existir, ela não é tão evidente.
Há um projeto político que está sendo defendido por parte da população. Não é o governo de Nicolás Maduro que está sendo defendido, mas o legado de Hugo Chávez (1954-2013). No entanto, há quem reconheça os avanços do governo de Chávez, mas não apoie Maduro e não se identifique com uma ideologia de esquerda. E há também quem nunca apoiou Chávez, por se considerar mais à esquerda do que ele, estando nesse momento nem ao lado de Maduro e menos ainda da oposição. Há quem odeie Maduro, odeie Chávez e odeie a oposição. Ou seja, não é tão simples quando dizer que há chavistas e opositores, apesar de num momento de agudização da crise, seja exigido tomar um lado.
O fato é que a oposição venezuelana não representa um projeto que passe alguma confiança. As pessoas que não aprovam o projeto chavista reconhecem que os opositores não oferecem nenhum projeto e que o que deve mudar na Venezuela não é Maduro, mas a estrutura. Às vezes, tinha a impressão que alguns venezuelanos esperavam mesmo era um milagre.
“Antes era melhor”. “Antes não estava assim”. “Se você tivesse conhecido aqui antes”. “Por que não veio nos visitar antes?”… Ouvi muito tais formulações. Mas o que significa esse “antes?”. Antes de Maduro? Antes da crise? Antes da morte de Chávez? “Antes do socialismo”, me disse uma moradora de Petare, a maior favela de Caracas e considerada a maior da América Latina, com um milhão de pessoas morando na região que fica a 15 quilômetros, aproximadamente, do centro de Caracas. Não sei se ela acredita nisso, mas não importa, porque o socialismo falhou com ela. Com crise ou sem crise, os pobres, em qualquer parte do mundo, são as pessoas mais afetadas pelo capitalismo. E numa situação de crise, crer em algo é fundamental para que os dias seguintes façam algum sentido serem vividos, ainda que seja acreditar que a culpa é do socialismo, ou ainda acreditar que é preciso defender um legado, acreditar que é preciso deixar o país, ou ficar.
Quem acompanhou o primeiro texto dessa série, se lembra que eu havia dito sobre o medo inicial de fotografar nas ruas de Caracas. Hoje, entendo que esse medo foi um grande parceiro do meu trabalho. Um fotógrafo que não tem medo da rua não respeita a rua. Porque o medo, de alguma forma, te situa diante do seu contexto. É preciso humildade e respeito para poder contar histórias das pessoas, mesmo que elas não saibam, muitas vezes, que estão sendo fotografadas, uma vez que a fotografia de rua admite, em muitos casos, que o fotógrafo registre cenas nas quais os personagens só agiram como agiram porque não notaram a existência de uma câmera.
Meu trabalho realizado na Venezuela teve uma intenção documental, ou seja, registrar uma história, em um determinado contexto. O material que você teve acesso foi construído, essencialmente, com fotografia de rua/cotidiano e retratos. Lancei-me em busca de personagens e cenas característicos que possam dizer sobre a Venezuela nesse tempo histórico. Retratos da finitude, da continuidade, da luta, da desconfiança, da espera. Essa terceira parte do ensaio é o meu próprio jeito de ver a cidade de Caracas e suas mudanças no contexto de crise social.
Amanda Cotrim
Fotógrafa foi à capital venezuelana movida pela vontade de retratar o cotidiano da cidade