Ao subir o tom contra Israel, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva coloca o Brasil em posição de liderança no movimento de oposição à política de Israel contra o povo palestino. Essa é a opinião dos especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato sobre o cenário político e o embate diplomático entre o Brasil e Israel. A posição do Brasil, avaliam, deve ecoar entre os países do Sul global e estimular outros países a tomarem posição sobre a guerra em curso no Oriente Médio.
“Nesse momento é capaz que Lula lidere o movimento junto com a África do Sul e outros países que suspenderam relações diplomáticas com Israel. Que isso possa ser entendido como indicativo de que Israel está perdendo apoios no seu crime contra a humanidade”, avalia a historiadora Arlene Clemesha, diretora do Centro de Estudos Árabes da USP.
“Lula assumiu uma posição política como o genocídio em Gaza. Há muito tempo se acumulam as denúncias contra Israel e isso está se normalizando. Lula subiu o tom para chamar a atenção e está num contexto favorável”, avalia Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da PUC-SP. A fala do presidente brasileiro aconteceu durante a 37ª Cúpula da União Africana.
Nesta segunda-feira (19/02), Netanyahu convocou embaixador brasileiro em Israel para uma “dura conversa de repreensão”, após ter afirmado no domingo que Lula cruzou a “linha vermelha”. Como resposta o governo brasileiro convocou também o embaixador brasileiro em Israel. A queda de braço diplomática teve início após afala de Lula, no domingo, que compara o massacre das forças militares de Israel contra a população na Faixa de Gaza ao genocídio promovido por Adolf Hitler contra os judeus.
Reginado Nasser ressalta que Colômbia, Chile e Bolívia tiveram posições contundentes em relação a Israel no final de 2023, momento em que ele considera que a posição do presidente brasileiro ficou aquém do contexto regional. “Essa posição do Lula também vai ser importante na América Latina, ainda é um momento inicial, mas tem essa liderança em relação à questão de Gaza.”
Mohammed Nadir, também avalia que a posição do governo Lula pode colocar o Brasil em uma posição de liderança diante da desorganização do sistema penal internacional, provocada pelo desrespeito de Israel às legislações internacionais.
“Não esqueçamos que o Brasil é uma potência, aspirante a uma potência global e tem todas as condições para desempenhar esse papel. É um país que defende o multilateralismo, com um projeto de mexer com esse sistema internacional pós-Segunda Guerra mundial, que é dominado pelos Estados Unidos e seus seguidores europeus. Então há um contexto maior de potências regionais que estão contestando essa situação de desorganização do sistema internacional”, disse.
O contexto da fala de Lula
Nasser acredita que a fala de Lula foi estratégica para chamar a atenção sobre o massacre em Gaza, já prevendo uma reação mais dura por parte do Estado israelense, quando se fala em Holocausto.
Para Arlene Clemesha, essa reação é uma tática de defesa utilizada por Israel para se proteger de ataques. “Era esperada a resposta de Netanyahu, a maneira de atuação da política do Estado de Israel tem sido acusar qualquer crítica que se faça à atuação do estado como antissemita. Essas comparações com o Holocausto são um dos pontos mais utilizados para atacar os oponentes. O que o Estado de Israel faz com a memória do Holocausto é instrumentalizar essa memória em benefício de suas políticas atuais”, afirmou.
Bruno Huberman, professor do curso de Relações Internacionais da PUC-SP acredita que a fala de Lula no domingo foi espontânea, feita de improviso, e não uma decisão pensada do Itamaraty em conjunto com a Presidência da República.
“Embora o presidente mande na burocracia do Estado, existe uma relação ali que às vezes um constrange o outro. E o que a gente tem visto desde 7 de outubro é o presidente Lula puxando de alguma forma a burocracia do Estado para a esquerda, digamos assim, no caminho de uma solidariedade internacional com os palestinos. Porque essa movimentação do Lula a gente vê desde as primeiras semanas, de falar, por exemplo, que isso era um genocídio”.
Presidente Lula durante encontro com presidentes da União Africana no sábado
Ricardo Stuckert
Hamas e Israel
Cobrado por um posicionamento em relação aos ataques do Hamas contra Israel no dia 7 de outubro, que resultaram na morte de cerca de 1,4 mil pessoas, o Ministério das Relações Exteriores se manifestou no dia 12 de outubro por meio de uma nota em que explicou a motivação do governo Lula para não adotar a classificação de grupo terrorista ao se referir ao Hamas.
“No tocante à qualificação de entidades como terroristas, o Brasil aplica as determinações feitas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, órgão encarregado de velar pela paz e pela segurança internacionais, nos termos do Artigo 24 da Carta da ONU”, disse a pasta no comunicado.
Na véspera do comunicado, um requerimento assinado por 61 deputados bolsonaristas, entre representantes do PL, Podemos, MDB, PSD e Republicanos, cobraram que o governo Lula (PT), por meio do Itamaraty, reconhecesse o Hamas como uma “organização terrorista”.
Uma semana após a divulgação da nota, no dia 20, o presidente brasileiro classificou pela primeira vez os atos de Hamas como terrorismo e classificou a reação de Israel como “insana”.
Em discurso durante a cerimônia de 20 anos do Bolsa Família, Lula chamou a atenção para o número de crianças mortas no conflito pelos ataques israelenses. “Hoje, quando o programa completa 20 anos, fico lembrando que 1.500 crianças já morreram na Faixa de Gaza. Que não pediram para o Hamas fazer ato de loucura que fez, de terrorismo, atacando Israel, mas também não pediram que Israel reagisse de forma insana e matassem eles. Exatamente aqueles que não tem nada a ver com a guerra, que só querem viver, que querem brincar, que não tiveram direito de ser criança”, disse.
Netanyahu quer ‘acabar com a Faixa de Gaza’
No dia 25 de outubro, Lula usou pela primeira vez o termo “genocídio” para classificar os ataques de Israel contra Gaza em uma endurecimento do discurso contra a reação desproporcional de Israel em relação aos ataques do Hamas.
“Não é uma guerra, é um genocídio que já matou quase 2 mil crianças que não têm nada a ver com essa guerra, são vítimas dessa guerra. E sinceramente, eu não sei como um ser humano é capaz de guerrear sabendo que o resultado dessa guerra é a morte de crianças inocentes”, disse.
Naquele dia, Lula tinha uma conversa por telefone com o emir do Catar como parte do esforço diplomático para a repatriação de brasileiros, diante do impasse entre as autoridades sobre a abertura da fronteira com o Egito. Naquele momento, o presidente brasileiro já havia conversado com líderes de diversos países, incluindo Israel, Autoridade Palestina, Egito, Irã, Turquia, França, Rússia e Emirados Árabes, com o objetivo de mediar uma solução para o conflito.
Naquele momento, o número de mortes em Gaza pelos ataques israelense já se aproximava de 5 mil pessoas. Dois dias depois, durante um café da manhã com jornalistas que cobrem a Presidência da República no Palácio do Planalto no dia 27, Lula endureceu novamente o discurso ao afirmar que o objetivo do primeiro-ministro de Israel seria “acabar com a Faixa de Gaza”.
“Agora, o que nós temos é a insanidade do primeiro-ministro de Israel querendo acabar com a Faixa de Gaza, se esquecendo que lá não tem só soldado do Hamas, que lá tem mulheres e crianças, que são as grandes vítimas dessa guerra”, disse. Na ocasião, o presidente brasileiro deixou claro que seu governo não considera o Hamas como um grupo terrorista, apesar de adotar essa classificação para o ataque do dia 7.
“Não queria que a imprensa brasileira tivesse dúvidas sobre o comportamento do Brasil. Ele só reconhece como organização terrorista aquilo que o Conselho de Segurança da ONU reconhece. E o Hamas não é reconhecido pelo Conselho de Segurança da ONU como uma organização terrorista, porque ele disputou eleições na Faixa de Gaza e ganhou. O que é que nós dissemos? Que o ato do Hamas foi terrorista”, disse Lula.