O tanzaniano Zablon Kiwelu só foi saber que o crânio de seu avô estava há décadas acumulando poeira num porão de Berlim no início de setembro de 2023, quando participou de um workshop, ao pé do imponente Monte Kilimanjaro, em seu país natal. A confirmação veio num papel timbrado da Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano (SPK), que tem sede na capital alemã. “Fiquei muito feliz pelo fato de, após mais de 100 anos, finalmente descobrirmos onde estava meu avô”. O documento dizia “positivo”, confirmando o parentesco de Kiwelu com um dos crânios armazenados no hospital Charité.
No crânio em questão, lê-se “Akida”, como eram chamados os guerreiros e conselheiros de alto escalão do então líder do povo Chagga na Tanzânia. O avô de Zablon Kiwelu, Sindato Kiwelu, foi em vida conselheiro do chefe Mangi Meli, líder dos Chagga no Kilimanjaro, explica o neto. Junto com outros 18 Akidas e líderes locais, ele foi enforcado pelas tropas alemãs no século 19.
Líder Chagga enforcado por tropas alemãs
Tudo indica que quem levou o crânio decepado de Sindato Kiwelu para Berlim após a execução foram os governantes coloniais. “Para os ocupadores alemães, os ossos, especialmente crânios, eram como troféus de guerra”, explica Valence Silayo, arqueólogo e genealogista da Universidade de Dar es Salaam.
Por outro lado, crânios também eram trazidos para fins de pesquisa científica, na maioria dos casos de teor racista. Silayo foi quem conduziu o workshop e também quem liderou a busca pelos familiares na Tanzânia, encarregando-se, ao final, da entrega dos resultados de DNA.
Num extenso projeto de pesquisa, cientistas do Museu de Pré-História e História Antiga dos Museus Nacionais de Berlim, juntamente com colegas de Ruanda, investigaram a procedência de cerca de 1.100 crânios humanos da antiga colônia da África Oriental Alemã. Hermann Parzinger, presidente da SPK, comenta que encontrar parentes vivos para três crânios por meio de análise de DNA foi “um pequeno milagre”, a comparável à proverbial “agulha no palheiro”.
Além do crânio de Sindato Kiwelu, por meio de amostras de saliva, dois outros armazenados em Berlim também puderam ser atribuídos com segurança à família Molelia. A linhagem vive em Kibosho, distrito da zona rural de Moshi, também na região do Kilimanjaro. Um dos dois crânios é aparentemente descendente do chefe Mangi Sina, que na época colonial governou um poderoso reino em Kibosho.
Após uma guerra prolongada, o exército de Mangi Sina derrotou em 1891 as Schutztruppen, as “tropas de proteção” alemãs nos territórios africanos. A vingança, porém, veio em 1893: Mangi Sina foi derrotado, sua fortaleza, destruída e seus combatentes, presos. O próprio chefe morreu poucos anos depois, em 1897.
Mas seu filho e herdeiro do trono, Molelia, era um guerreiro orgulhoso e resolveu atacar os alemães novamente, conta Silayo. O desfecho foi sua captura e subsequente execução: “em 2 de março de 1900, ele foi enforcado pelos alemães”. A cabeça decepada de Molelia foi então enviada a Berlim, onde permanece desde então.
Desejo de um ritual de sepultamento tradicional
O fato de os Chagga não terem podido enterrar seu líder na época, de acordo com seus rituais tradicionais, tem consequências para eles até hoje, relata Silayo. “Os Chagga, afinal, seguem rigorosamente a regra de só enterrar todos seus familiares no Kilimanjaro; em nenhum outro lugar”.
Se esses ritos não são observados, e os mortos não são enterrados corretamente, “seu espírito continua a vagar” indefinidamente, explica o arqueólogo. “Desde então, os Chagga atribuem muitas epidemias, fracassos econômicos, quebras de safra ou outras coisas ruins a esse espírito que não encontra descanso”.
DPA
Crânio de vítima do genocídio no Sudoeste Africano Alemão (1904-1908) exibido em igreja de Berlim em 2018
Os familiares exigem, portanto, que os restos mortais de seus parentes sejam devolvidos o mais rápido possível. Silayo observa que, ainda que para os alemães se trate de um ato simbólico, o processo tem um significado muito maior para os descendentes na Tanzânia.
Ele reconhece que a Alemanha atualmente nutre laços de amizade com a Tanzânia, financiando diversos projetos de desenvolvimento no país, mas a história colonialista não deve ser esquecida por causa disso: “os alemães têm que assumir a responsabilidade e reconhecer que o que fizeram foi contra os direitos humanos. Que não foi correto e que devem pedir desculpas por isso. Dessa forma, tais projetos de ajuda terão mais significado”.
Exibir num museu ou enterrar?
Zablon Kiwelu ainda não sabe exatamente o que fazer com os restos mortais de seu avô. O descendente do conselheiro Chagga diz que a decisão deverá ser tomada em família assim que o crânio chegar à Tanzânia. Pela tradição, o corpo inteiro deveria ser enterrado, mas por se tratar apenas de uma parte, Kiwelu cogita outra possibilidade: “vamos colocá-lo num museu, onde gente de todo o mundo possa ver”.
A ideia de expor os ossos num museu que explicasse a história colonial já foi discutida no próprio Kilimanjaro, explica Joseph Mselle, do Sindicato dos Chefes da Tanzânia, uma espécie de associação ou sindicato de todos os representantes dos povos tradicionais do país.
No contexto de um festival tradicional em 2021, Mselle, que atualmente é o principal responsável pela região do Kilimanjaro, recorreu à presidente tanzaniana, Samia Suluhu Hassan. Ela delegou então a tarefa ao Ministério do Turismo, Esporte e Cultura, que se encarregou dos pedidos de devolução à Alemanha, juntamente com a pasta do Exterior. “O ministro prometeu garantir que todos os processos necessários sejam implementados para encerrar esse capítulo da história”, conta Mselle.
No início de setembro, em seu último comunicado à imprensa, a SPK afirmou que “os familiares e o governo da Tanzânia serão informados assim que possível”. Até o momento, porém, além do documento com os resultados do teste de DNA e do papel timbrado da fundação, não houve notícias do governo alemão.
Os resultados das análises foram apresentados por Konradin Kunze, da organização Flinn Works. Juntamente com a associação Berlin Postkolonial e a Old Moshi Cultural Tourism, ele começou a coletar as amostras de saliva na Tanzânia em 2017. Paralelamente, iniciou o projeto Marejesho (“Restauração” em suaíli), uma exposição itinerante sobre a história colonial do Kilimanjaro que viaja de aldeia em aldeia na região.
Juntamente com o Centro Europeu para Direitos Constitucionais e Humanos (ECCHR, na sigla em inglês) de Berlim, Kunze também organizou o workshop de setembro, quando explicou os resultados do exame às famílias tanzanianas durante uma videoconferência da Alemanha.
Zablon Kiwelu conta que contratou um advogado para contatar diretamente o governo alemão: “quero voar para Berlim este ano e levar o crânio para casa”.