O poeta, artista plástico e ensaísta português Ernesto de Melo e Castro morreu em São Paulo, aos 88 anos, neste sábado (29/08). O anúncio foi feito neste domingo (30/08) pela filha do poeta, a cantora Eugênia Melo, através das redes sociais.
Vivendo no Brasil há mais de 20 anos, E.M. de Melo e Castro foi pioneiro da poesia experimental portuguesa.
Em nota, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo, lamentou a morte do poeta e disse que ele “foi a personalidade mais destacada de um movimento marcante da cultura portuguesa contemporânea” e um “artista que muito contribuiu para o diálogo cultural luso-brasileiro”.
O texto a seguir foi publicado pelo jornal O Estado de São Paulo, em 07 de novembro de 2000, com o título “Antologia de Melo e Castro reúne 50 anos de poesia”.
O poeta português E.M. de Melo e Castro lança hoje uma reunião de 50 anos de poesia. Antologia Efémera (Lacerda) é o nome do livro, que, segundo o autor, pretende ser uma “súmula” do seu trabalho como escritor, desde a adolescência. “Uma publicação de toda a minha poesia ocuparia 1.200 páginas, o que seria inviável no momento; achamos que a edição de um quarto disso seria um desafio qualitativo e apresentaria ao público um livro de mais fácil aquisição e leitura”, explica o poeta.
O título, para ele, dá a ideia de um cabedal acumulado ao mesmo tempo em que aponta para o caráter necessariamente provisório de uma antologia de um autor em atividade. Melo e Castro, hoje com 68 anos, é um dos mais importantes poetas portugueses. Em 1969, tornou-se um pioneiro mundial do videopoema, ao transmitir pela Rádio e Televisão Portuguesa uma obra chamada “Roda Lume”.
Com 2 minutos e 50 segundos, o poema irritou os censores, apesar de não ter nenhum conteúdo político explícito. O poeta já estava sendo processado por “abuso de liberdade de imprensa” pelo regime, por publicar poemas eróticos e escatológicos (recentemente, relançou um conjunto com essa temática em Portugal “para combater o politicamente correto”, explica, dividindo a última palavra em duas partes e acentuando o sotaque português, em que a letra “o” tem um som próximo ao da letra “u”). O autor também tinha problemas com poesias mais “sérias”, como é o caso do poema baseado na palavra silêncio, que integra a antologia.
Segundo o poeta, o poema visual foi censurado “inúmeras vezes” pela burocracia instalada nos jornais pela ditadura salazarista.
Nos 50 anos de poesia, Melo e Castro teve seu nome associado a vários movimentos de vanguarda. O que acabou por rotulá-lo foi o concretismo, pois Melo e Castro foi, em Portugal, o seu mais ativo arauto. “O que é engraçado, porque só fiz poesia concreta por um breve período de minha vida, fiz apenas 50 ou 60 poemas concretos”, diz.
Segundo o poeta, essa associação a essa sua fase experimental, concreta e combinatória, não dá conta de toda a sua obra, que começou e ainda se vale do verso tradicional (“Como por uma fenda no tempo/ diviso as sombras do que vem depois” são os dois primeiros do poema “Inquietação”, de 1950), passou pela prosa (contos, alguns publicados na antologia), a videopoesia e a poesia visual (como em “O Conhecimento”) e agora espera ansioso pela disseminação da Internet de banda larga. A antologia, acredita, ajuda a entender seu processo criativo: “Verifiquei que os textos iniciais poderiam iluminar o que estou fazendo agora”.
Para Melo e Castro, os meios de difusão cultural não se superam, mas se acumulam. “Diziam que o livro iria acabar, mas ocorreu o contrário: nunca se publicaram tantos livros quanto agora.” O que muda, acredita, é a posição do artista, diante das novas possibilidades: “Mallarmé encarnou a angústia do homem criador diante da página em branco; hoje, o poeta encarna essa angústia diante da TV, do cinema e, especialmente, da Internet; em breve, com a banda larga, tudo isso vai estar junto”, afirma.
Para Melo e Castro, a poesia visual, no entanto, não é nenhuma novidade na história da humanidade. “A dimensão visual do texto não é uma invenção do século 20; a leitura da esquerda para a direita e de cima para baixo, sim, é algo intimamente relacionado à tradição literária ocidental.” Na opinião do poeta, essa tradição transformou a literatura mais num “jogo de ideias que num jogo de escrita”. Em dois momentos históricos, no entanto, essa concepção foi desconstruída: tanto o barroco quanto a poesia no século 20 reincorporaram à obra poética o jogo de visualidades.
Há cinco anos, o português vive em São Paulo, na Avenida Angélica, e dá aulas de literatura comparada na Universidade de São Paulo. Na semana passada, Melo e Castro foi ao cinema para assistir ao filme Capitães de Abril, da conterrânea Maria de Medeiros, sobre a Revolução dos Cravos, de 1974, o movimento militar que pôs fim à ditadura portuguesa. Foi abordado e ouviu uma pergunta a que já se acostumou: “O senhor é o poeta Haroldo de Campos?”
Mais que a simples aparência física, em especial pela volumosa barba, os dois são amigos, encontram-se em São Paulo com frequência. Desde os anos 1950, Melo e Castro foi o principal interlocutor dos jovens concretistas em Portugal. Ele, embora considere a confusão engraçada, se queixa: “Ele é mais corpulento do que eu.”
Segundo Melo e Castro, já aconteceu de a confusão ocorrer na presença de Haroldo e de seu irmão, Augusto. Depois de convencer o interlocutor de que não era Haroldo, perguntaram-lhe, então, se era o Augusto. “O que é um absurdo, o Augusto tem quase dois metros de altura.”
Outra confusão comum na sua vicia é ser chamado de Eugênio de Melo e Castro, confundindo o seu nome com o da filha, cantora. “Mas aí a culpa é minha”, justifica. “Deveria tê-la chamado de Ernesto”.
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Ernesto de Melo e Castro foi pioneiro da poesia experimental portuguesa
Prontuário
– Nome: Ernesto Manuel de Melo e Castro, assina E.M.
– Nasce em 19/4/1932, na Covilhã, Serra da Estrela.
– Altura: 1,74m.
– Colarinho: 38 (medida portuguesa).
– Tem rosto de cristão-novo sefardita.
– Fala muito, pensa muito.
– Separado, está em processo de recasamento, pela quinta vez.
– Tem duas filhas, do primeiro casamento.
– Pressão arterial: 15 por 9.
– Fígado médio e coração ótimo, depois de safenado.
– Não joga, já fumou cachimbo e bebe só quando quer.
– Filho de industriais do lanifício, seu pai, violinista, era também compositor.
– Prefere a cidade ao campo e nunca andou a cavalo.
– Mais que tudo, gosta de mar: “Porque o mar é o mar e não há maneira de o mar deixar de ser mar”.
– É agnóstico e se porta como tal.
– Tornou-se engenheiro por força da necessidade; gostou.
– Como engenheiro fez sucesso nos anos 70 e 80 e escreveu manuais.
– Tem boa memória visual, mas, com número de telefone, é o fim.
– Adora música barroca; gosta de Debussy, Ravel, John Cage, Stravinski, Jorge Peixinho, músico de vanguarda português.
– A música popular é a brasileira e a ibérica sefardita.
– Gosta especialmente de livros e de automóveis.
– Escreve em todas as horas e momentos; nunca distinguiu muito as atividades de engenheiro e escritor.
– Em comida, agrada-lhe o que é bem-feito, mas o gosto é básico: “Nada ultrapassa um bife com batatas fritas, um ovo a cavalo ou um caldo verde.”
– Autor que lê com maior prazer: Camões.
– Livro que leu o maior número de vezes: “Isso é mais complicado”.
– Volta com frequência a Camões e Fernando Pessoa.
– É leitor de ensaios e poesia, não de ficção.
– Acha que todos os romances têm cem páginas a mais.
– Escreveu contos, mas de forma dispersa.
– Encontrou alguns da adolescência, achou graça, não vai publicá-los.
– É metódico, graças ao treino de engenheiro.
– Escreve com prazer e facilidade e, até por isso, talvez escreva demais.
– Tem uma espírito autocrítico violento.
– Incomoda-se com o politicamente correto, o sentimentalmente correto, o economicamente correto e o normativo.
– Acredita em vitaminas; prefere suco de laranja.
– É intolerante para com a estupidez humana: “Uma pessoa inteligente tem tudo o que quiser de mim”.
– Como ficção, gostaria de ser ele mesmo; só consegue às vezes.
– Provérbio chinês: “Senta-te à beira do rio e verás passar os cadáveres dos teus inimigos”. Criou uma variante: “Senta-te à beira do rio e verás passar o teu próprio cadáver”.
– Pensa no passado, para tentar entendê-lo, até hoje não pôde.
– Nunca viu fantasmas, mas teve alucinações.
– A morte não é uma presença obsessiva: “Já a vi de perto e não tive medo”.