Com Milei, extrema-direita chega ao poder na Argentina
Javier Milei e a extrema-direita argentina capitalizaram o voto de revolta contra um governo que não cumpriu muitas de suas promessas às maiorias populares
Javier Milei, o candidato da extrema direita, venceu as eleições argentinas com uma vantagem de mais de 11% dos votos, um resultado sem precedentes desde o retorno da democracia na Argentina. A Argentina está passando por uma reviravolta política histórica com um triunfo inédito da extrema direita desde o fim da ditadura. Milei, um economista ultraliberal de 53 anos e seguidor da escola austríaca, tornou-se o novo presidente depois de obter 55,69% dos votos nas urnas e derrotar o candidato peronista, Sergio Massa, que obteve 44,3% dos votos. A eleição que terminou na noite de ontem leva à presidência um outsider político que será acompanhado, como vice, por Victoria Villaruel, uma porta-voz dos militares do genocídio perpetrado pela última ditadura militar que assolou a Argentina entre 1976 e 1983.
O candidato peronista da Unión por la Patria e atual ministro da Economia do governo de Alberto Fernández foi o primeiro a se manifestar após as 20h (horário da Argentina) para reconhecer a derrota. "Os resultados não são os que esperávamos. Eu me comuniquei com Milei para parabenizá-lo", disse Massa, abalado pelos resultados adversos. O líder peronista disse que o dia ratificou que "a Argentina tem um sistema democrático forte e sólido que respeita os resultados" e acrescentou que "Javier Milei é o presidente que os argentinos elegeram para os próximos quatro anos". O ministro da Economia também disse que havia pedido ao presidente Fernández que iniciasse a transição da gestão do Estado para o novo governo e que, para ele, "uma etapa política de sua vida está chegando ao fim", já que "outras responsabilidades" o aguardam. Ele pediu imediatamente uma licença como chefe da pasta da economia até que as novas autoridades assumam o controle.
Por sua vez, Javier Milei tomou a palavra mais tarde em seu escritório de campanha, antes das 22h. Tentando fazer um discurso moderado, o presidente eleito disse que "o fim da decadência da Argentina está começando" e pediu que o atual governo cumprisse seu mandato até o fim. Ele também acrescentou com veemência que "não há espaço para o gradualismo, não há espaço para a tibieza, não há espaço para meias medidas", dando assim uma mensagem clara das mudanças estruturais de ajuste de choque que ele pretende realizar. Será que ele conseguirá? E se conseguir, quanto de suas ideias de campanha radicalizadas ele conseguirá implementar? Em seu discurso, não faltou a evocação mística de um homem que afirma falar com seu cachorro morto: Milei apontou que as forças para seu triunfo "vieram do céu".
Enquanto isso, do lado de fora do hotel Libertador, onde Milei montou seu centro de campanha e está hospedado desde o primeiro turno, em 22 de outubro, milhares de apoiadores se aglomeraram para comemorar até as primeiras horas da manhã. E também no Obelisco, o emblemático monumento de Buenos Aires que sempre se torna o centro das comemorações políticas e esportivas. Entre as bandeiras argentinas exibidas pelos apoiadores de Milei, havia uma que dizia "La Julio Argentino Roca", em alusão ao presidente argentino que realizou o extermínio dos povos nativos no século XIX.
Dessa forma, a extrema-direita argentina capitalizou o voto de revolta contra um governo que não cumpriu muitas de suas promessas de campanha destinadas a recuperar as condições de vida das maiorias populares após o governo de Mauricio Macri, que deixou um país endividado com o Fundo Monetário Internacional em quase 57 bilhões de dólares. A fórmula libertária venceu em 21 das 24 províncias do país.
A Argentina tem mais de 40% de pobreza, que afeta mais de 56% das crianças, de acordo com as últimas medições oficiais do Instituto Nacional de Estatística e Censo (INDEC). Milei também recebeu a maior parte dos votos da tradicional ala direita de Bullrich-Macri, que, após o primeiro turno, anunciou seu apoio explícito ao candidato do Libertad Avanza. Macri imediatamente parabenizou Milei em suas redes sociais.

El Salto
O presidente eleito da Argentina, Javier Milei
Transição e resistência
A partir de agora, uma transição sem precedentes começa na Argentina até que o novo governo de extrema-direita tome posse na Casa Rosada em 10 de dezembro. Nos próximos dias se saberá como será formado o novo gabinete de ministros do governo, levando em conta que o acordo firmado com Mauricio Macri também será revelado. O que se sabe até agora é que o ex-presidente colocará homens de sua confiança em ministérios importantes, como o da Economia e o das Relações Exteriores.
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No entanto, o fato novo e sem precedentes é que, pela primeira vez desde o fim da ditadura, o espaço político que fez sua campanha eleitoral reivindicando os crimes desse período sombrio, clamando por impunidade para os assassinos e negando a cifra de 30 mil desaparecidos triunfa em uma eleição nacional. Além disso, é uma força política que reivindicou a etapa neoliberal aberta pelo presidente Menem na década de 1990 e prometeu fechar o Banco Central, dolarizar a economia, abrir o país às importações sem restrições, privatizar as empresas públicas e atacar uma série de direitos históricos conquistados pela luta popular, como demonstrado muito recentemente pelo movimento feminista e de diversidade sexual, que na Argentina conseguiu a lei do aborto, o casamento igualitário e a lei de identidade de gênero, entre outras conquistas.
Milei cunhou um discurso, alinhado com a extrema-direita mundial, que contesta todas as instituições vigentes. Ele também expressa sua admiração por Margaret Thatcher e assumiu uma posição contrária à tradição diplomática da Argentina com relação às ilhas do Atlântico Sul, declarando que apoiava o direito à autodeterminação dos Kelpers, os colonos britânicos das Ilhas Malvinas. Ele chegou ao ponto de questionar os artigos 14 e 14 bis da Constituição Nacional, que protegem o direito ao trabalho e à moradia, que ele descreveu como uma expressão legal "dessa aberração que é a justiça social". Entretanto, nada disso foi suficiente para barrar a agenda que Javier Milei vem propondo ao longo dos anos, alimentada pelo mainstream televisivo que o utilizou para obter audiência, instalando questões como a venda livre de órgãos ou crianças, ou a posse livre de armas.
Fraqueza nas Câmaras
Um novo momento histórico está começando na Argentina e há a possibilidade de uma reconfiguração do regime político, mas se Milei conseguirá ou não colocar em prática suas ideias reacionárias é um ponto de interrogação. O libertário conquistou um importante ponto de apoio da direita expresso no processo eleitoral que culminou no domingo, 19 de novembro. No entanto, o futuro executivo do La Libertad Avanza não terá um cheque em branco para seu plano de governo.
O novo gabinete de extrema-direita na Argentina, que recebeu apoio internacional de outros líderes de extrema-direita, como o brasileiro Bolsonaro e o chileno Kast, encontrará inúmeras contradições e fraquezas desde o início. A força política de Milei não terá uma maioria parlamentar. Ele também não tem nenhum governador de província em seu campo político, um fator vital de poder para a configuração política da Argentina. Além disso, a situação e a tradição de luta dos movimentos sociais e de trabalhadores na Argentina prometem forte resistência a qualquer medida reacionária que tente avançar sobre os direitos adquiridos. Uma nova etapa está começando na Argentina, que não promete ser muito pacífica, mas muito convulsiva.