Em setembro de 2023, a Nio, uma fabricante chinesa de carros elétricos, apresentou seu mais recente produto. Mas não se tratava de um carro, e sim de um telefone celular. O dispositivo tinha os recursos usuais de um smartphone, mas também tinha mais de trinta funções específicas para carros, como instruir o carro a estacionar sozinho ou dirigir sozinho até o local do proprietário – algo permitido na China em baixas velocidades e em espaços restritos. Os óculos de realidade aumentada conectados à Internet da Nio permitem que os passageiros do carro compartilhem um jogo de computador ou uma reunião por vídeo. Quase uma década após sua fundação em 2014, no entanto, a Nio ainda não obteve lucro com seu principal negócio, o de automóveis. Ela quase ficou sem dinheiro cinco anos depois de ter sido fundada, mas um banco controlado pelo Estado injetou 1,6 bilhão de dólares e um governo local garantiu 1 bilhão de dólares[1]. O apoio do governo permitiu que ela suportasse as perdas e continuasse a operar.
A história da Nio oferece revelações sobre o caminho da China para o domínio global dos carros elétricos. O governo oferece registros de carros mais baratos, preferência de estacionamento e descontos em impostos para os compradores de carros elétricos. Entre 2009 e 2021, o governo despejou mais de 130 bilhões de dólares em subsídios no mercado de veículos elétricos – e isso sem contar terrenos baratos para as fábricas, reduções de impostos e outras formas de apoio indireto. Os Fundos de Orientação do Governo fornecem “capital paciente” para investimentos de longo prazo em empresas em estágio inicial em setores considerados de prioridade nacional[2]. Atualmente, os carros movidos a novas energias (totalmente elétricos e híbridos plug-in) representam mais de 1/4 das vendas de carros novos na China. A líder do setor, a BYD, triplicou seus lucros no primeiro semestre de 2023 e é tão bem-sucedida que recentemente encomendou sua própria frota de gigantescos navios transoceânicos de transporte de carros, que transportam mais de 5 mil carros por vez.
Agora, no entanto, a economia da China está desacelerando sob o peso de uma bolha imobiliária que está desinflando, crises financeiras entre grandes construtoras e gastos baixos com o consumo interno. As perdas nos setores imobiliário e de construção são um problema porque o setor imobiliário representa cerca de 1/4 da economia chinesa. O tesoureiro australiano Jim Chalmers descreveu recentemente a desaceleração do crescimento na China como um dos maiores riscos para a economia da Austrália. A preocupação é mais ampla do que a Austrália porque, nos cinco anos anteriores a 2022, a economia da China foi responsável por quase 1/3 do crescimento econômico global[3]. O que essa desaceleração significa? Para responder a essa pergunta, precisamos primeiro entender como a China cresceu tão rapidamente.
Como a China cresceu
A economia da China estava gravemente subinvestida quando o país começou a se abrir na década de 1980. O governo incentivou a formação de poupança, canalizou-a para um sistema bancário rigidamente controlado e usou-a para subsidiar a infraestrutura e o setor de manufatura. A China acabou tendo os fabricantes mais competitivos do mundo e a melhor infraestrutura logística e de transporte, mas a renda disponível das famílias era muito baixa. O controle do governo sobre o setor bancário tornou essa situação possível: as pessoas tinham de depositar o que economizavam em um banco administrado pelo governo e recebiam pagamentos de juros sobre esses depósitos a taxas de rentabilidade muito baixas em relação ao crescimento. Essa foi uma transferência oculta de renda das famílias para os setores de manufatura e infraestrutura. Os trabalhadores rurais que vinham trabalhar nas cidades também eram mal pagos em relação ao que produziam, resultando em mais transferências desse tipo. Sob a direção do governo, as reservas das famílias e dos trabalhadores foram canalizadas por meio do sistema bancário controlado pelo Estado para financiar enormes investimentos em infraestrutura e capacidade de produção.
Conforme demonstrado por Matthew Klein e Michael Pettis em Trade Wars Are Class Wars (“Guerras comerciais são guerras de classe”, em tradução literal), essa foi uma forma de “repressão financeira” que “produziu uma transferência maciça e sustentada do povo chinês para grandes fabricantes, construtoras de infraestrutura, incorporadoras imobiliárias e governos provinciais e municipais”[4]. Um dos resultados disso foi que a China registrou a maior taxa de poupança da história: 52% do PIB em um determinado momento, em comparação com a taxa de poupança global de 25%. Outro resultado menos apreciado foi o fato de que as famílias chinesas consumiram menos de 40% da produção do país – uma proporção muito menor do que a de qualquer outra grande economia. A competitividade industrial da China ocorreu às custas da renda disponível das famílias.
Distorções estruturais da economia chinesa
Essas distorções estruturais foram reconhecidas pelo primeiro-ministro da China, Wen Jiabao, em março de 2007, no que ficou conhecido como o discurso dos “Quatro Uns”. Ele disse que “o maior problema da economia chinesa é que o crescimento é instável, desequilibrado, descoordenado e insustentável”. Se a China tivesse mudado para um modelo de crescimento que priorizasse o consumo em detrimento do investimento, o resultado teria sido uma renda familiar mais alta e uma rede de segurança social mais forte. Mas isso teria exigido uma série de novas empresas e instituições jurídicas, financeiras e políticas, algo que o governo não queria. Em vez disso, o governo reagiu à Crise Financeira Global gastando muito em infraestrutura de transporte, edifícios e outras iniciativas de urbanização. A infraestrutura para as Olimpíadas de Pequim de 2008 foi um importante pretexto. A revista Time nomeou “O Trabalhador Chinês” como candidato a segunda pessoa do ano em 2009 por ajudar o mundo a evitar os piores efeitos do colapso.
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O tesoureiro da Austrália sabe que a China precisava do minério de ferro australiano para fabricar aço para esses projetos colossais e que as grandes exportações de recursos para a China foram um dos motivos para o bom desempenho da economia e do sistema financeiro australianos durante a crise financeira global (outros motivos incluíam o estímulo econômico do governo trabalhista, a exposição muito pequena dos bancos australianos ao colapso do mercado imobiliário dos EUA e os padrões de empréstimo do órgão regulador bancário australiano que, em grande parte, mantiveram os bancos longe dos empréstimos subprime e de outros empréstimos de alto risco). Não é de se admirar, portanto, que Chalmers tenha dito recentemente que compartilha “as preocupações bastante substanciais que as pessoas têm expressado sobre a economia chinesa […] A fraqueza, a fragilidade […] tem implicações óbvias para nós na Austrália”[5]. O índice de preços dos metais é uma das primeiras coisas que os funcionários do Tesouro da Austrália analisam todas as manhãs, e por um bom motivo: o preço do minério de ferro sustenta o orçamento federal. Os Documentos Orçamentários incluem uma “análise de sensibilidade” que mostra que uma variação de 10 dólares por tonelada no preço do minério de ferro resultaria em um aumento ou diminuição de 5 bilhões de dólares no tamanho da economia da Austrália.[6]
Para a alegria dos exportadores de matérias-primas da Austrália, em 2008, o governo chinês acelerou sua iniciativa de alta poupança e alto investimento, fazendo com que o consumo das famílias caísse ainda mais rapidamente em termos de porcentagem do PIB. Isso manteve a renda das famílias e a demanda interna baixas, restringindo o crescimento das empresas privadas, uma vez que sua lucratividade exige que as pessoas gastem mais. Por sua vez, o governo continuou expandindo o setor público para manter o nível de crescimento que considerava politicamente necessário. Os principais beneficiários desses anos de alto investimento foram novos e poderosos grupos do setor manufatureiro voltado para a exportação e do setor imobiliário, especialmente em nível provincial. Eles acumularam riqueza e ganharam conexões políticas ao embarcarem em uma onda de investimentos maciços para atingir os objetivos do governo central. O crescimento foi espetacular, sem dúvida, e levou os fabricantes de veículos elétricos da China ao domínio mundial, mas também houve bolhas de ativos, especialmente no setor imobiliário, e um aumento acentuado da dívida.
Jiri Rezac / The Climate Group
Trabalhadores chineses instalam painéis solares no Terminal de Passageiros da ferrovia de Hongqiao, em Xangai, na China.
“Novo desenvolvimento” sob o presidente Xi
Os líderes da China parecem ter reconhecido a gravidade do problema. Em um discurso de janeiro de 2021 para autoridades do Partido Comunista, o presidente Xi Jinping disse: “mudamos o pensamento de que a taxa de crescimento do PIB é o único parâmetro de sucesso”. Xi pediu um “novo estágio de desenvolvimento” com o objetivo de “buscar um crescimento genuíno do PIB em vez de um crescimento inflacionado”. Os governos locais não devem “competir entre si para obter taxas de crescimento mais altas […] não podemos buscar cegamente o crescimento rápido sem levar em conta as leis e condições objetivas”.
Que formas de política essa retórica assumiria? Um exemplo é um mecanismo de falência livre de intervenção política. É mais fácil falar do que fazer, dada a influência política de grupos bem-sucedidos que há muito tempo recebem crédito artificialmente barato. Outros exemplos incluem um crescimento mais rápido dos salários, cortes de impostos, cupons de consumo financiados pelo governo e a criação de uma rede de segurança social com pensões mais altas, benefícios para desempregados e serviços públicos melhores e mais amplamente disponíveis. Como diz Martin Wolf, do Financial Times, “Este parece ser um momento decisivo na história econômica moderna da China. Se o governo reconhecer que o antigo modelo de alta poupança e alto investimento está quebrado, ele poderá gerar um crescimento razoável com uma economia mais equilibrada e voltada para o consumo”.
É claro que isso não será fácil, justamente porque as instituições comerciais, jurídicas, financeiras e políticas do modelo atual proporcionaram à China uma enorme influência em todo o mundo e também criaram novos ricos e poderosos grupos em nível provincial. Outros líderes antes de Xi falaram em mudar o modelo da China: em 2010, o vice-primeiro-ministro Li Keqiang lamentou a “estrutura econômica irracional” da China e argumentou que “o desenvolvimento descoordenado e insustentável está cada vez mais evidente”. Mas o modelo criou vencedores econômicos e um grande orgulho nacional, e a economia da China não está encolhendo – está apenas crescendo menos rapidamente do que antes. A melhor estimativa é que o crescimento da China foi de 4,6% em 2023 e provavelmente será de 4,8% em 2024. Isso significa que a China está crescendo mais lentamente do que a meta do governo de 5%, mas ainda assim é confortavelmente superior a algumas economias avançadas e mais de dez vezes mais acelerada do que a zona do euro.
Se o governo conseguir redefinir seu caminho rumo ao Novo Desenvolvimento, a China precisará de menos importações de commodities industriais, como minério de ferro, cimento e equipamentos de terraplenagem, mas mais importações de alimentos e bens de consumo, como trigo, carne bovina e artigos de consumo. O ajuste resultaria em muitos anos de crescimento menor, mas de um crescimento mais equilibrado. A própria economia australiana, focada em exportações primárias, teria que se adaptar a essas mudanças.
Implicações dos gastos militares
Um setor que provavelmente não verá reduções de gastos tão cedo é o militar. A China está acrescentando várias ogivas aos seus mísseis balísticos de alcance intercontinental e implantando um novo míssil de maior alcance em submarinos. Uma análise de especialistas do Projeto de Informações Nucleares da Federação de Cientistas Americanos estima que a China tenha um estoque de aproximadamente 410 ogivas nucleares para lançamento por mísseis balísticos terrestres, mísseis balísticos marítimos e bombardeiros. Espera-se que a China tenha cerca de mil ogivas nucleares operacionais até 2030, instaladas em sistemas capazes de atingir o território continental dos Estados Unidos. Seu objetivo é possuir uma capacidade de retaliação nuclear maciça, conhecida como “capacidade de destruição assegurada” na linguagem da estratégia nuclear. Simplificando, ela quer garantir que não possa ser intimidada por ameaças nucleares de outros países. Seu programa nuclear, portanto, se enquadra no paradigma dos princípios de dissuasão.
Contraforça e contravalor
Um motivo subestimado para esse programa de armas nucleares é que os desenvolvimentos na detecção de alvos e nos sistemas de lançamento de armas estão tornando os arsenais nucleares em todo o mundo mais vulneráveis. Por vezes chamados de “revoluções da detecção e da precisão”, esses desenvolvimentos permitem que um pequeno número de países tecnologicamente avançados encontre e destrua forças nucleares adversárias – uma estratégia conhecida como “contraforça”. Aeronaves pilotadas remotamente, pequenos satélites e algoritmos de aprendizado por máquina estão possibilitando a implantação de grandes redes de radares espaciais para localizar mísseis móveis, silos fixos, bases aéreas estratégicas, portos submarinos, sistemas de comando e controle e bunkers de lideranças de outros países. Os radares de captação sintética inclinaram a balança do esconde-esconde em favor dos buscadores. Eles recobrem o solo com ondas de rádio em comprimentos de onda muito maiores do que o espectro visível, permitindo a detecção de alvos à noite e através de nuvens e redes de proteção. Avanços recentes no processamento de dados permitem a identificação de mísseis transportados por caminhões, mesmo quando estão em movimento, bem como sua velocidade e direção de deslocamento. Avanços na navegação e orientação melhoraram a capacidade de submarinos, bombardeiros e lançadores de mísseis terrestres móveis de determinar com precisão suas próprias posições enquanto estão em movimento e de tornar alvos protegidos vulneráveis como nunca antes. Os Estados Unidos estão bem à frente na contraforça e, portanto, não priorizam o estabelecimento de armas nucleares tendo como alvo as cidades, a infraestrutura econômica e industrial, os sistemas de energia e comunicação, os portos ou os nós de transporte de um adversário, uma abordagem conhecida como “contravalor”.
A estratégia de combate nuclear dos EUA tem se concentrado explicitamente na contraforça na última década. Em 2013, o Pentágono declarou oficialmente que os Estados Unidos “manteriam capacidades significativas de contraforça contra adversários em potencial”. Entre outras coisas, isso significa atacar preventivamente a infraestrutura de comando e controle de um adversário e suas forças nucleares antes que elas possam ser lançadas. Os estrategistas militares da China entendem tudo isso, e é por isso que a China está expandindo seus campos de silos de mísseis. Seu acúmulo nuclear pode, portanto, ser entendido como uma abordagem defensiva que reduz a pressão para uma escalada por medo de ser subitamente desarmada por um ataque de contraforça “inesperado”. A Coreia do Norte, que não tem a riqueza da China e, portanto, não pode tomar medidas semelhantes, tem bons motivos para se preocupar.
Um novo manual para novas prioridades
Quarenta anos após as reformas de Deng Xiaoping, a China abriga o segundo maior número de bilionários do mundo. Reconhecendo as diferenças acentuadas de riqueza e oportunidades com o aumento da desigualdade de renda, o governo adotou o conceito de “prosperidade comum”. Esse era o objetivo original de Deng Xiaoping. Ele queria que a China aproveitasse as forças produtivas do capitalismo e decidiu que seria necessário permitir que algumas pessoas enriquecessem primeiro. Mas o objetivo era acabar criando uma prosperidade de base ampla. Esse é agora o objetivo político principal do presidente Xi, além de garantir que o país tenha poder militar suficiente para se defender. A prosperidade comum significa, como diz Keyu Jin em The New China Playbook, que “ela deseja ardentemente evitar” o que vê no Ocidente – uma “grande divisão entre ricos e pobres” que “alimentou a divisão, a desconfiança, a hostilidade e o extremismo”. Ela quer que a liderança política “toque a música que as empresas dançam, e não o contrário”.
O alcance da China no mundo emergente – em desenvolvimento de infraestrutura, capital, tecnologia e know-how – reflete sua ambição de remodelar as regras e normas globais por meio da criação de vínculos econômicos onde eles são bem-vindos. E eles são bem-vindos em muitas partes do mundo em desenvolvimento, em parte porque esses países também reconhecem a necessidade de uma ordem internacional democrática e equitativa. Eles reconhecem, também, que a China não faz proselitismo, muito menos procura impor seu modelo de governança. Mesmo antes da Revolução Industrial, quando era um dos países mais ricos do mundo, “a China não exportava suas ideias, mas deixava que outros as buscassem”, como Henry Kissinger escreveu em “Sobre a China”.
O governo da China valoriza mais a estabilidade do que a hegemonia. Sua postura militar e suas ações para lidar com a desaceleração econômica continuarão a refletir essa prioridade.
(*) Clinton Fernandes é membro do grupo de pesquisa Future Operations e professor na University of New South Wales. Sua pesquisa é focada em tecnologias de guerra emergentes e materiais e métodos de manufatura avançados. É autor de Sub-Imperial Power: Australia in the international arena, publicado pela Melbourne University Press em 2022.
(*) Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera