É corrente entre a esquerda brasileira a expressão “conquistar corações e mentes”. Nesta coluna, sigo o mesmo princípio: travar a batalha das ideias, o excelente slogan da Editora Expressão Popular, lançando mão de armas que provocam a emoção.
Não é apenas Paulo Leminski que sabe que na luta de classes todas as armas são boas, “Noites, pedras e poemas.” O uso de mecanismos de sedução sensorial está no coração da guerra, na qual amor e medo funcionam como ímãs para a cooptação ou paralisação de oponentes.
Assim como as bombas eram lançadas de aviões no Vietnã, panfletos eram lançados em Havana (Cuba) de aeronaves que decolavam de Miami. Os conteúdos variavam entre aqueles que disseminavam o medo, prometendo que criancinhas religiosas seriam comidas pelos comunistas; ou o prazer, concretizado na capacidade de adquirir e acumular bens materiais infinitamente.
A revolução nas comunicação elevou essa capacidade a um infinito que ainda hoje não conseguimos precisar. Os “panfletos” passaram a ser customizados, portando apenas o conteúdo que nos emocionam individualmente, chegando a qualquer lugar, e não apenas aos grandes centros; e imediatamente, sem espaço para a contraprova, através desses objetos que provocam ao mesmo tempo tanta intimidade e tanta distância – os celulares. Com isso, foi possível um salto de qualidade para a realização de operações psicológicas, também chamadas de inteligência. Em outras palavras, novos meios para o mesmo objetivo: “conquistar corações e mentes”.
E de onde saiu, afinal, esse termo? Ele foi usado pela primeira vez pelo general colonial francês Hubert Lyautey, enfrentando a rebelião dos Bandeiras Negras durante a campanha de Tonkin (Norte do Vietnã), em 1895. Além dos vietnamitas, os chineses também contestavam o domínio francês na região. O termo corações e mentes fazia referência ao objetivo tático de trazer uma população subjugada para o lado das forças ocupantes.
![](https://controle.operamundi.uol.com.br/wp-content/uploads/2024/05/forcas-armadas.jpg)
(Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Posteriormente, o general colonialista e britânico Gerald Templer, em guerra contra o Exército de Libertação Nacional Malaio ( braço militar do Partido Comunista da Malásia) retomou o termo ao afirmar, em 1952, que a vitória “não reside em enviar mais soldados para a selva, mas [na conquista dos] corações e mentes do povo malaio”. Na ocasião, o termo surge associado à estratégia de contrainsurgência, que dá a entender menor uso da força militar, situações apresentadas como menos coercitivas, com menores violações aos direitos humanos.
Na mesma toada dos franceses e britânicos, Lyndon Johnson, dos EUA, adotou esse como o mote da campanha conduzida nos anos 1960 no Vietnã, quando o país envolveu o povo sul-vietnamita na guerra contra os norte-vietnamitas. Anteriormente, os EUA já haviam pago 78% dos custos da guerra travada pela França, também no Vietnã, em 1954.
Peter Davis ganhou o Oscar de Melhor Documentário em 1974 com o filme Corações e Mentes, que retratava o cotidiano da Guerra do Vietnã entre 1964 e 1975 mesclado às imagens cotidianas de estadunidenses imersos numa cultura belicista. O filme apresenta a narrativa de estadunidenses diretamente envolvidos na guerra, ou não; e dos vietnamitas, numa conversa que poderia ser “de surdos”, mas faz muito sentido.
A mescla de cenas chama a atenção. A primeira: com um fundo musical vietnamita, crianças brincam, trabalhadores colhem arroz, todos usando aquele simpático chapéu triangular. Corta. Musical estadunidense com cerca de 100 atores fardados no palco dançando com fuzis e cantando “estamos apenas começando, e não vamos parar de ganhar, até que o mundo seja livre”. Corta. Juramentos de um jovem recruta a uma mãe emocionada de que nunca seria membro do partido comunista. Corta. Negociações nos mercados vietnamitas, nos quais um relógio é vendido por 3 mil dólares, e uma noite com uma prostituta, a 1 mil dólares, ambos os preços objeto de barganha pelos militares estadunidenses que circulavam no local. Corta. Discurso de oficial após a guerra em escolas infantis nos EUA, criticando desertores e preparando as crianças – “algum dia, serão vocês” –, a lutar pela família, por Deus, e pelo país. Corta. Uma criança vietnamita chora por cinco minutos (em um filme de 120) sobre o túmulo do pai, cena seguida pelo depoimento de um estadunidense: “o povo oriental não tem apego a vida, muitos morrem e ninguém liga, não são como nós”. Corta. Vietnamitas explicam “enquanto houver arroz, nós lutaremos; e caso acabe, nós plantaremos e continuaremos a lutar”. Corta. Burguesia vietnamita em uma festa, rindo e bebendo, declarando-se favorável à guerra pois os EUA trarão o desenvolvimento ao país. Corta. É possível ver o salvacionismo se mesclando à desumanização absoluta que acompanha as guerras, como identificada por Fanon na guerra da Argélia. Enquanto um soldado se sente realmente levando a civilização ao bárbaro – “nós estávamos fazendo alguma coisa por eles”, outros soldados afirmavam que “fediam como pequenos selvagens. Vamos apagá-los, eu dizia. Vamos eliminá-los da face da Terra. Será que um dia entenderemos essa raça do Leste?”. Fim das revelações antecipadas.
A expressão “conquistar corações e mentes” é retomada mais recentemente nas campanhas dos EUA e aliados da OTAN no Afeganistão e no Iraque. Algo semelhante é mobilizado pelos generais brasileiros que coordenaram a Missão da ONU no Haiti, para quem o sucesso da campanha deve-se ao “jeitinho brasileiro”, pois os soldados que faziam as operações bélicas nas comunidades eram os mesmos que se engajavam nas ações de assistência social, como distribuição de alimentos. Dessa maneira, teriam conquistado o apoio dos locais. Apontam alguns relatórios que, da parte dos haitianos, há divergências.
Interrompemos a discussão da conquista dos corações e mentes na guerra em geral, voltando os olhos para o que se passa dentro dos quartéis. As Forças Armadas cativam os corações, mentes e barrigas que quem segue a carreira militar; algo em que o pentecostalismo atual também tem tido sucesso, enquanto as esquerdas, tragicamente, não. Cativa as mentes ao oferecer sua interpretação de Brasil como um país de “milhões em ação que seguem em frente”, sua leitura sobre de onde surgem os diversos problemas sociais, e uma proposta de como organizar a sociedade para resolvê-los de forma conservadora. No caso do neopentecostalismo, a leitura local soma-se à universal, em um interpretação contida na Bíblia, fonte para a interpretação de problemas e localização de soluções.
Nos quartéis, como nas igrejas, cativam-se os corações através de símbolos, canções, marchas e da vivência comum de situações físicas ou psicológicas limites. Oferecem um sentido de missão. Mesmo um recruta temporário sente fazer parte de algo maior do que ele, e maior do que uma família. Obviamente existem egoístas, corruptos, etc., como em qualquer instituição, mas muitos procuram as fileiras e lá veem saciado um sentimento bonito que aquece o coração, aquele sentimento de dever cumprido. O soldado que ajuda desabrigados no Rio Grande do Sul se sente útil, feliz por prestar um relevante serviço público. Aquela pessoa ajudada se sente aliviada, pois alguém está olhando por ela em um momento de dificuldade. Esse casamento local tem um quê de tragédia e um quê de beleza. E a macro política de Brasília dificilmente impactou, ou impactará, nesse casamento que se forja em meio à lama. Lula sabe disso, e não ignorantemente, exaltou o coração que bate dentro do peito do guerreiro.
E cativam também as barrigas, ao oferecer uma carreira sólida, com vencimentos que proporcionam realizar sonhos. Mesmo aos recrutas oferecem meios para que consigam elevar o padrão de vida familiar. Para as famílias, é um local onde “os meninos se tornam homens”, assumindo responsabilidades, aprendendo pequenas tarefas e contribuindo financeiramente.
Poderíamos mobilizar dezenas de argumentos que mostram como, secularmente, as Forças Armadas têm tido sucesso em cativar corações, mentes e barrigas. Também não faltariam palavras para mostrar o impacto político disso. Quem leva o socorro, leva a estrada, leva a urna e leva – porque não? –, o candidato.
A grande questão é, porque o progressismo não mais faz isso? Ho Chi Minh, que recentemente aniversariou, dirigiu uma longa luta pela independência vietnamita. Junto a Giap, derrotou os gigantes imperialistas do seu tempo. Antes de se tornar um comunista, era um grande patriota, motivado pela utopia de um Vietnã livre. Lutava por liberdade e unificação, por uma vida boa para o povo. Por corações, mentes, barrigas e, também, pela poesia:
“Nem muito alto, nem muito largo, nem imperador, nem rei.
Você é só um marco de estrada, que se ergue junto à rodovia.
As pessoas passam, você indica a direção certa e impede que alguém se perca.
Você informa a distância que se precisa ainda percorrer.
Sua tarefa não é pequena, e toda a gente lembrará sempre de você.”
(Marco de Estrada – Ho Chi Minh)
Com a licença mineira que me cabe ao indicar as distâncias: o futuro é logo ali, pertim.
(*) Ana Penido é pós-doutorada em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.