Parece óbvio que, ante a fratura do sistema internacional e o possível enfrentamento entre a hiperpotência e os novos polos de poder, formas bélicas de resolver os espaços na política internacional sejam inevitáveis. Ante essa possibilidade, pressões serão sentidas em todos os teatros de operação, que ocuparão o mundo completamente. Não obstante a dramaticidade da situação que se avizinha, ela pode ser uma janela de oportunidades para os países que ainda permanecem em situações de neocolonialismo, de domínio ou de influência inevitável na atual correlação de forças internacionais.
Mas a oportunidade, sem o devido preparo para o seu aproveitamento, é inútil. Por isso, muito embora a crise atual do sistema internacional pressagie o parto de um mundo novo, a acomodação dos países dependerá, em grande medida, da capacidade de seus líderes de futurizar seu posicionamento e se preparar para lutar por ele. Neste caso a “luta” poderá não se restringir ao âmbito diplomático, podendo exigir o preparo da força para combinar com a diplomacia a defesa do direito ao futuro próprio.
A maioria dos países do Sul Global está nessa situação e podem ser atraídos para a beligerância —pela força centrípeta de algum dos polos que disputam o mundo— ou procurar neutralizar as forças gravitacionais para manter um posicionamento de não-alinhamento pragmático. Entrar na órbita gravitacional de um dos centros centrípetos significa subordinar os interesses nacionais aos interesses desse centro. Alguns dos países serão seduzidos, outros induzidos, convencidos, coagidos ou mesmo obrigados a cair na órbita de um ou outro centro. Outros perceberão, na resistência às atrações gravitacionais, a janela de oportunidades que se abre para defender seus próprios interesses. Mas poucos a abrirão —o aproveitamento dessa oportunidade não é para fracos.
O continente americano é uma região do mundo na qual o imperialismo estadunidense tem feito sentir suas garras. Desde decisões impostas até a substituição de governos, os países do continente têm sofrido com a secular ingerência estadunidense. Essa insidiosa prática foi exposta ao Congresso estadunidense em 2 de dezembro de 1823, pelo presidente James Monroe, que emplacou seu nome à doutrina colonizadora, sintetizada na frase “América para os americanos” (onde os “americanos” são apenas eles). Desde então, a potência do norte manifestou-se no continente com interferências políticas, subornos, chantagens, invasões, intervenções militares punitivas, imposição de governos e golpes de Estado para manter a ordem na região — a sua ordem, a que permite satisfazer os seus interesses econômicos e políticos sem contestação. A partir do fim da II Guerra Mundial, os EUA foram apertando os laços estratégicos com o argumento de “salvar” os países do comunismo. Assim, “democratizando” pela força, mesmo por golpes de Estado, foram ajustando os regimes de dependência pela procuração de setores nacionais beneficiados, tanto da esfera política, quanto a econômica, a militar, a cultural e, infelizmente, a acadêmica, que passou a analisar o mundo com a epistemologia da metrópole. Teria sido impossível manter os grilhões da dependência sem a aquiescência dessas elites nacionais.
A possibilidade de um não-alinhamento pragmático, que defenda os interesses nacionais sem atender às demandas dos centros decadentes ou emergentes de poder, exige neutralidade ativa frente às pressões por um posicionamento beligerante no confronto sistêmico. Defender a neutralidade ativa demanda liberdade de ação estratégica. Dado o grau de dependência estratégica, nenhum país da região goza individualmente dessa liberdade. A alternativa para conseguir um espaço de liberdade de ação estratégica é um regime de cooperação estratégica, por parte, pelo menos, de um segmento da região. Isso foi tentado, em lguma medida, no começo da segunda década deste século com a UNASUL e a criação do Conselho de Defesa Sul-americano (CDS). Foi um momento de certa homogeneidade ideológica na região e de distração estratégica do hegemon, no que chamei “a década do sonambulismo estratégico”, perdida na perseguição a “terroristas” pelo mundo. Mas, quando os ventos políticos mudaram na região, a UNASUL e o CDS foram rapidamente desmontados e não foi casual.
A alternativa para aproveitar a janela de oportunidades seria procurar uma liberdade de ação estratégica que permitisse certa autonomia decisória não confrontativa com os interesses do hegemon, ou, como diria Thiago Rodrigues, “Não é ser totalmente dependente da hegemonia global estadunidense e também não é ser uma potência contra-hegemônica. É aumentar espaços de autonomia dentro da atual arquitetura hegemônica do planeta”. O que não será nada fácil e, considerando a temperatura bélica do planeta, tampouco será pacífico.
A general Laura Richardson, comandante do Comando Sul, aumentou notoriamente suas visitas à região para, segundo suas palavras, “proteger nossas riquezas” (ênfase minha) dos “concorrentes e adversários” do governo dos EUA que estão “tirando proveito diariamente desta região”, advertindo que “o que acontece nesta região em termos de segurança, impacta nossa segurança – nossa segurança nacional na pátria”. As reservas naturais de lítio, petróleo, ouro, cobre e água doce da América do Sul são consideradas pelos EUA uma questão de segurança nacional, referindo-se à disputa geopolítica com China, Rússia e Irã. Não por outro motivo manifestou-se “muito emocionada porque tenho sentido que podemos nos associar muito mais e fazer um maior trabalho em equipe do que estávamos fazendo”, depois da sua visita à Argentina, onde foi presenteada com uma base que controla a passagem entre o Oceano Atlântico e o Pacífico e sua projeção antártica, vendeu 24 aviões polivalentes F16 da Dinamarca e recebeu a encomenda de 250 blindados Stryker. Todos esses regalos tornam mefiticamente inequívoco que o presidente Milei mostra submissão incondicional não apenas a Trump, mas ao desenho estratégico do hegemon.
Mas a Argentina não é o único aderente ao desenho estratégico da potência hegemônica. A política externa brasileira também está engessada e talvez mais comprometida com esse alinhamento estratégico ao contar com um general na cadeia hierárquica do Comando Sul. Aliás, não tenho conhecimento de que esse engessamento, essa vergonhosa submissão, tenha passado pela necessária autorização legitimadora do Congresso Nacional.[1] Tratar-se-ia, no caso da inexistência dessa autorização, de mais uma mostra da autonomia militar e de que, mesmo sendo um instrumento do Estado, se arrogam no direito de tomar decisões que comprometem a política externa e a soberania nacional.
Em 2024 a região é diferente se comparada à de 2012. Hoje os ventos são outros e diversos; além de neoliberais, são de extrema-direita, de direita, da “esquerda” de resultados que produzem redemoinhos que não conseguem se potenciar cooperativamente num furacão que defenda os interesses nacionais nem regionais. Com elites econômicas nascidas e alimentadas na dependência e inculturadas na Disney, que nem se preocupam com a soberania, na medida em que seus interesses egoísticos sejam satisfeitos; com uma mídia corporativa que modula as percepções da sociedade para ver as “vantagens” de uma “boa” dependência; acadêmicos conformados em ver a história desde os balcões da falsa neutralidade axiológica; com militares estrategicamente comprometidos com um dos polos que aglutinarão as forças no doloroso parto do novo mundo, resta a amarga resignação de ver fechar mais uma janela de oportunidade para aumentar a autonomia decisória e, por não lutar pela “neutralidade ativa”, chorar mais uma geração de jovens, mortos em campos de combate algures, defendendo os interesses daqueles que decidirão por nós o nosso futuro.