Quase dez anos depois do mundo assistir atônito ao sequestro de 300 crianças, a grande maioria meninas, da cidade de Chibok, na Nigéria, o Estado ainda é incapaz de impedir que esses sequestros sigam acontecendo. Em 2021, na cidade de Kaduna, mais 150 crianças foram sequestradas de suas escolas por grupos armados que deixam um rastro de destruição, às vezes queimando aldeias inteiras em sua fuga.
Em março deste ano os sequestros retornaram. No dia 8, cerca de 280 crianças foram raptadas novamente em Kaduna e no dia 10 outras 15 crianças foram levadas por homens armados de um internato na aldeia islâmica de Gidan Bakuso, no estado de Sokoto, no noroeste do país. O modus operandi é o mesmo: grupos armados, fundamentalistas islâmicos como o Boko Haram ou simplesmente bandidos invadem aldeias e escolas e levam em sua custódia mulheres e crianças. O objetivo é a extorsão como meio de financiar suas operações; eles buscam no sequestro uma forma de exigir dinheiro das famílias pelo resgate.
Nas últimas duas décadas, o panorama do terrorismo fundamentalista islâmico passou por uma transformação geopolítica significativa. A ameaça, antes concentrada em países do Norte Global, como Estados Unidos e Europa, migrou gradativamente para o continente africano, principalmente para países como Nigéria, Níger e Mali. Alguns fatores podem apresentar importantes explicações para esse fenômeno: o orçamento de segurança interna em países como os Estados Unidos vem aumentando gradativamente e compondo uma parcela cada vez mais significativa do contribuinte, além disso a cooperação entre as centrais de inteligência dos países da OTAN tornou mais difícil a ação de grupos fundamentalistas.
Campanhas como a realizada durante o governo de Barack Obama contra países como a Líbia de Muammar Gaddafi cortaram importantes fontes de financiamento a grupos fundamentalistas, assim como a perda de território e poder do Estado Islâmico no Oriente Médio diminuiu sua capacidade de inspirar e recrutar novos membros. Enquanto os países do Norte Global foram se tornando cada vez mais seguros desenvolvendo aparatos tecnológicos de segurança como de reconhecimento facial e drones invisíveis a olho nu, além de uma vigilância constante em fóruns e redes sociais que ajudaram a prever e neutralizar qualquer ataque organizado por parte de grupos simpatizantes, o continente africano se tornou um terreno cada vez mais fértil para o fundamentalismo islâmico.
O grupo Boko Haram surgiu no início dos anos 2000 na Nigéria, sob a liderança de Mohammed Yusuf. Inicialmente, era um movimento religioso que pregava contra a influência Ocidental e a corrupção no governo. Com o tempo, o grupo se radicalizou e adotou métodos violentos, como ataques a escolas, igrejas e mesquitas. O objetivo do Boko Haram é estabelecer um califado islâmico no nordeste da Nigéria e impor a lei sharia. O grupo é responsável por milhares de mortes e deslocamentos populacionais, e representa uma grande ameaça à segurança e estabilidade da região.
Recentemente Níger, Mali e Burkina Faso se desligaram da CEDEAO, a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental, e da União Africana, com o objetivo de criar a sua própria organização, a AES, Aliança dos Estados do Sahel, como forma de garantir cooperação econômica e militar entre os países. Após expulsar as tropas francesas do país, o Mali, então governado pelo General Assimi Goita, recuperou em novembro de 2023 a cidade de Kidal das mãos de grupos fundamentalistas islâmicos, feito que as tropas francesas e a OTAN foram incapazes de realizar mesmo depois de 14 anos de ocupação militar na região. A Burkina Faso do capitão Ibrahim Traoré e o Níger do general Tiani também têm garantido importantes vitórias contra os jihadistas em seus próprios territórios.
Aparentemente a cooperação ocidental segue visando o continente africano no que diz respeito apenas à exploração de seus recursos naturais. Resta à cooperação local de países como Mali, Níger e Burkina Faso a retomada de sua autonomia e autodeterminação, ainda que contrariando os interesses do Norte Global na busca pela solução dos desafios impostos pela atuação desses grupos jihadistas no continente africano. A Nigéria do presidente Bola Tinubu poderia buscar nessa cooperação entre os países da África Ocidental a resposta para o fim dos sequestros perpetrados pelos fundamentalistas em seus territórios.
(*) João Raphael (Afroliterato) é escritor, professor e mestre em educação pela UFRJ. É apresentador do programa “E aí, professor?” do Canal Futura.