Che Guevara foi uma das personalidades mais influentes e populares do século XX. Seu nome e imagem – estampados e comercializados nos mais diversos produtos – mobilizaram inúmeras transgressões à ordem. Adotado como símbolo pela esquerda radical armada, cuja ascensão é notável após o sucesso da Revolução Cubana, em 1959, cruzou fronteiras ideológicas e foi “canonizado” por militantes de esquerda do mundo inteiro. Juan Carlos Portantiero confere ao impulso revolucionário guevarista uma grande influência que pode ser dividida em três períodos: um primeiro que se estende de 1959 a meados dos anos 1960, quando a reprodução do modelo cubano ocorreu mais por entusiasmo do que por um plano coordenado; um segundo, inaugurado pela reunião da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), em 1967, que é marcado pela estruturação de guerrilhas – a partir de Havana – em diversos países do subcontinente; e o último momento, em que o eixo dos combates se desloca para o meio urbano e o influxo teórico da Nova Esquerda começa a misturar-se com a ideologia guevarista, já na segunda metade da década de 1970 (PORTANTIERO, 1983, p. 342-347). A produção do mito de Che, portanto, passou por diversas etapas, sendo uma delas as conjecturas e análises sobre a última incursão guerrilheira do comandante: a insurreição na Bolívia.
Che Guevara e a Luta Revolucionária na Bolívia (Boitempo/2023) trata desse episódio de maneira diacrônica, inserindo-o num contexto temporal e estratégico mais amplo, no qual a personagem central planejou, incentivou e participou de levantes populares em países da periferia capitalista. Tal movimento teórico é fundamental para desmistificar opiniões produzidas por comentadores da guerrilha boliviana, que a caracterizaram como aventureira e sem conexão com a produção marxista. Um trecho longo, mas esclarecedor de Eric Hobsbawm sintetiza esse posicionamento:
“Em nenhum outro lugar as insurreições rurais foram feitas em termos de uma análise política séria ou com alguma perspectiva real de sucesso. Na melhor das hipóteses, foram tão heroicamente inúteis (e, pode-se acrescentar, tão cheias de retórica vaga) quanto as várias invasões da Itália por grupos de jovens mazzinianos devotados e condenados ao fracasso na década de 1850, que tinham muito em comum com os movimentos guevaristas. Assim, não há nenhum mistério em relação aos motivos de seus insucessos. As razões gerais estão expostas no livro um tanto desconexo de Luis Mercier Vega (com David Weissbort), Guerrillas in Latin America: The Technique of the Counter-State (1969), um dos muitos tratados antiguevaristas desiludidos escritos após a derrota da insurreição boliviana em 1967. Em resumo, as insurreições rurais fracassaram porque contradiziam tudo o que se sabe sobre a guerra de guerrilhas rural e quase tudo o que se sabe sobre como ocorrem as revoluções. Elas poderiam ter obtido sucesso somente por um mero golpe de sorte. A maioria dos grupos marxistas organizados – e de forma alguma apenas os PCs ortodoxos – opunha-se a elas naquela fase, reconhecendo tanto a superficialidade de seus apelos a Marx e Lênin quanto a sua negligência na política. O guevarismo, como assinala Mercier Vega, atraiu principalmente intelectuais de classe média e (o que ele não ressalta com muita clareza) jovens oficiais. (HOBSBAWM, 2017, 331-332″)”.
Alegou-se por muito tempo, portanto, que o projeto guevarista empreendido na guerrilha boliviana e em outras localidades era desconectado das massas e não estava de acordo com as teorias de Karl Marx e Vladimir Lênin. Como consequência lógica, ele estaria socialmente isolado e predisposto a falhar. Somente em raras exceções – como o teria sido a Revolução Cubana – tal modelo poderia triunfar.
A obra de Luiz Bernardo Pericás esmiúça o episódio e demonstra sua maior complexidade do que admitida pelos críticos de Guevara. Inicia pela descrição da Bolívia em meados do século, uma nação que acabara de sair de um processo revolucionário, em 1952, tendo como resultado várias modificações econômicas, políticas e sociais. Dentre várias que se pode citar, destaca-se a reforma agrária, a qual distribuiu terras para os camponeses bolivianos e cuja influência sobre o objeto de estudo foi considerável (os camponeses indígenas, que Che e boa parte do movimento comunista latino-americano consideravam como potenciais insurgentes, acabariam por apoiar o governo daquele país). A garantia do sufrágio universal provavelmente também auxiliou a concretizar o apoio dessas massas, minando qualquer intento de subvertê-las para o movimento contra a ordem.
Ao mesmo tempo, o jovem Ernesto Guevara, que visitou a Bolívia no ano seguinte à revolução, em momentos emitiu percepções desfavoráveis em relação ao processo político em curso, indicando seu caráter limitado. 14 anos depois, ele voltaria ao país para seu último projeto guerrilheiro.
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Che Guevara foi uma das personalidades mais influentes e populares do século XX
Antes disso, o Che foi para o Congo, país que vivia uma situação de convulsão social. A passagem pela nação africana não pode ser separada do que ocorreu na Bolívia anos mais tarde, como elucida Pericás; o Congo era central na disputa entre o neocolonialismo e as forças de libertação nacional para Che. Uma vitória do Movimento Nacional Congolês (MNC) representaria um passo para o triunfo do anti-imperialismo e incitaria outros países a repetir o feito; o contrário significaria a superposição dos Estados Unidos sobre a ex-colônia belga e, consequentemente, do imperialismo sobre a África.
Uma série de problemas acabaria minando a possibilidade de êxito do projeto guevarista, como é descrito no livro aqui resenhado. Dentre eles o fato do Che e seus homens demonstrarem clara insatisfação com o comprometimento dos congoleses, que desertavam aos montes durante os combates e tinham dificuldades de se adaptar ao rigor do cotidiano guerrilheiro. Guevara escreveu em epístola a Fidel:
“Direi apenas que aqui perdi minha fama de objetivo ao manter um otimismo carente de base, diante da situação existente. Posso lhe assegurar que, se não fosse por mim, esse belo sonho estaria totalmente desintegrado no meio da catástrofe geral” (PERICÁS, 2023, p. 86).
A empreitada na região de Ñancahuazú seria apenas um primeiro passo na guerra anti-imperialista que deveria eclodir em toda a América Latina. Em consonância com o livro que se tornou um manual para todos os insurgentes do terceiro mundo, Guerra de Guerrilhas, o projeto demonstra que as contradições do capitalismo do subcontinente – marcado pela submissão das burguesias locais ao imperialismo ianque e pela superexploração de seus trabalhadores – tornaram-se tão agudas que não pode mais ser evitada a convulsão social. Como a contrainsurgência, coordenada pela CIA e pelo exército dos Estados Unidos, era continental e planificada a partir de um centro, assim teria de ser a revolução na América Latina (LÖWY, 2017, p. 303-306). Expandir a guerra de classes através das fronteiras bolivianas para o Brasil, Argentina e Peru era, portanto, a tarefa a ser realizada pelos combatentes da selva.
O problema foi justamente a incapacidade de concretizar esse projeto. O que ocorreu de fato foi o isolamento político, social e militar dos guerrilheiros. Como narra o autor, o acampamento central que haviam montado foi descoberto e invadido; o grupo liderado pelo Che e a coluna chefiada por Joaquim, separaram-se e não conseguiram mais travar contato; os americanos investiram em armas e treinamento dos soldados bolivianos; com o tempo e o fechamento do cerco militar, perdeu-se também o contato com Cuba; e, para completar o isolamento, nenhuma das organizações nacionais de esquerda que poderiam entrar na luta o fez. O Partido Comunista da Bolívia (PCB) – principalmente seu então secretário geral, Mario Monje –, e o Partido Comunista Marxista-Leninista (PC-ml) – de orientação maoísta –, em última instância, não tiveram nenhuma participação direta naquele projeto. No caso do PCB, a condição para sua participação efetiva seria a liderança política e militar nas mãos de Mario Monje. Marcado pela derrota no Congo, onde a chefia bélica da guerrilha foi cedida aos líderes locais, Guevara não aceitaria essas condições, fato que decretou definitivamente a impossibilidade de união entre os pró-soviéticos e os pró-cubanos (TAIBO II, 2011, p. 523).
Nessa conjuntura, as tropas de Che não puderam suportar a pressão inimiga e o comandante – utilizando os pseudônimos de Ramón e, posteriormente, Fernando – foi capturado na Quebrada do Yuro, levado para o povoado de La Higuera e executado por Mario Teran no dia 9 de outubro de 1967. Seu nome, todavia, continuou vivo e inspirando gerações. Para além do já mencionado campo das esquerdas, dentro do qual a influência de Guevara é óbvia, sua imagem também foi “canonizada” popularmente pelos habitantes da região em que foi feito prisioneiro, cuja expressão de consternação não foi escondida quando viram o corpo do comandante exposto no hospital Nuestro Señor de Malta em Vallegrande. A obra aqui resenhada trata, por isso, em seu último capítulo, da construção do imaginário popular acerca de Che, que o eternizou na região como Santo Ernesto de la Higuera.
Para narrar tais eventos e contextualizá-los na realidade social boliviana e também nos planos de contrainsurgência dos Estados Unidos, o autor lança mão de vasto acervo documental, reproduzido nos apêndices ao final do livro. Tão ricas quanto o próprio escrito, as fontes vão muito além das mais usualmente utilizadas pelos estudiosos do evento, que habitualmente recorrem aos diários dos guerrilheiros. Paco Ignacio Taibo II, por exemplo, mobiliza esses documentos e um informe específico da CIA na construção de seus capítulos sobre a empreitada guerrilheira. As cartas e demais informações, segundo o jornalista, foram retiradas de outras pesquisas. Luiz Bernardo Pericás, além de utilizar os mesmos diários, também extrai informações de epístolas trocadas entre Che e Cuba, comunicados dos grupos guerrilheiros à população, discursos governamentais, documentos oficiais do exército boliviano e da CIA e missivas relacionadas ao PCB. Destarte, a contribuição da obra não está apenas em seu conteúdo – ainda pouco estudado no Brasil –, mas também na disponibilização em português de um acervo que enriquece em demasia as pesquisas sobre a personagem e esse episódio central de sua trajetória.
(*) Renan Somogyi Rodrigues da Silva é mestrando em História Social na Universidade de São Paulo.