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Sucesso de público e crítica, A Separação fala, sem discurso político, de um Irã moderno que se choca com valores tradicionais
No fim da década de 1990, chegavam ao Brasil os primeiros filmes iranianos, que desde a Revolução Islâmica de 1979 não eram distribuídos com frequência no Ocidente. Apesar da abundante produção, o cinema do país sobrevivia além-fronteiras somente por renomados diretores dos anos 1960 e 1970, como Bahram Beizai, Ebrahim Golestan e Sohrab Shahid Saless, hoje esquecidos. A descoberta das obras de Abbas Kiarostami, Mohsen Makhmalbaf, Majid Majidi e Jafar Panahi foi um acontecimento, arrebatando os amantes do cinema com suas crônicas singelas, planos longos e sem pressa, e um enigmático despojamento.
Anos depois, entretanto, os grandes festivais de cinema, responsáveis por apontar as cinematografias da vez, distanciaram seus holofotes do cinema iraniano em busca de novos olhares e experiências. As estreias provenientes do país foram minguando e, para os brasileiros, a produção iraniana ficou restrita a Kiarostami e algumas poucas joias que aparecem durante a Mostra de Cinema de São Paulo ou no Festival do Rio. A maioria das imagens que nos chega do Irã insistem no fundamentalismo e no fanatismo religoso, e a cultura do país acaba soterrada por uma poeira política, como bem expressou o diretor iraniano Asghar Farhadi, ao ganhar o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro por A separação.
Há um ano, Farhadi sobe palcos e palcos para receber prêmios por A separação – do super político Festival de Berlim (onde o júri protestou não só dando o prêmio máximo para Asghar, mas também deixando vazia a cadeira de seu conterrâneo Panahi, impedido de sair do país) ao tapete vermelho dos Academy Awards. O filme ainda está em cartaz e é uma oportunidade fascinante para o público reencontrar-se com o cinema iraniano.
A separação não trava um confronto político direto, nem trabalha com metáforas para falar da situação política do Irã – recurso usado por importantes cineastas iranianos para driblar a censura, como a frequente escolha de crianças como protagonistas, que funcionavam como veículos emblemáticos para criticar a opressão social.

Assim como em seu filme anterior, À procura de Elly (2009), Farhadi concentra-se na exploração de micropolíticas: a invasão do privado pelo público ocasionada por um Estado teocrático e, principalmente, os enfrentamentos que a modernização vem promovendo no Irã. O altíssimo número de divórcios é um aspecto dessas mudanças observado por Farhadi, e é da separação de um casal que o filme trata – mas não apenas disso.
Simin quer ir embora do país para oferecer um futuro melhor à filha adolescente, Termeh. Como uma mulher casada não pode viajar sozinha, e seu marido Nader se recusa a acompanhá-la para cuidar do pai doente, ela pede o divórcio. Para seguir trabalhando, ele contrata Razieh para ocupar-se do pai. A partir de um desentendimento entre Nader e Razieh, uma avalanche furiosa de complicadas situações vai percorrer a trama, propiciar reviravoltas angustiantes e desdobramentos morais e religiosos que embalam variadas separações. Nos diálogos (traço forte do cinema iraniano), extensos e enérgicos, nunca se aborda uma solução pacífica para o emaranhado de problemas. As pessoas se debatem em suas fraquezas, e até as causas mais irrepreensíveis são desarranjadas pelo fluxo inexorável dos acontecimentos. A câmera na mão, que nunca se distancia dos personagens e de seus dramas, só abre o quadro para mostrar ambientes divididos: os espaços geográficos materializam as separações por meio de onipresentes umbrais de portas, escadas, corrimãos, persianas, janelas…
Asghar abstém-se de mostrar algozes. É notável a presença frágil e esperançosa de Termeh, sempre encolhida e murmurando com sua voz dolorosa enquanto todos os outros não fazem outra coisa que não seja berrar.
Assim como Termeh, Farhadi não grita para falar do Irã – a potência de sua obra está na sutileza com as questões espinhosas. Procurando Elly segue os mesmos caminhos narrativos e estéticos de A separação: uma porção de personagens – amigos que passam uns dias descansando no litoral – entra em um conflito repleto de reviravoltas a partir do desaparecimento de uma convidada, do qual todos são um tanto culpados e um tanto vítimas. Os filmes não permitem flashbacks, digressões ou situações paralelas, e esse imediatismo faz com que o espectador se instale no centro de todos os choques.
Ao lado de Farhadi, Bahman Ghobadi compõe a geração 2000 do cinema iraniano. Seu último longa-metragem, Ninguém sabe dos gatos persas (2009), ganhou o mundo através de festivais prestigiosos e do torrent que o diretor mesmo semeou. Em um falso documentário, o casal de músicos Negar e Ashkan enfrenta uma epopeia para ensaiar, armar um show, e conseguir passaportes para tocar com sua banda de indie rock em Londres. Ao mesmo tempo em que mostra esse universo cosmopolita com uma cena musical vibrante, Ghobadi explora a difícil situação da cultura no Irã sob Ahmadinejad, quem promoveu a intensificação da censura após os protestos que se seguiram a sua reeleição, em 2009.
O diretor, autoexilado nos Estados Unidos, fez o filme na clandestinidade, em 17 dias, e os protagonistas tiveram que pedir asilo a países estrangeiros. O título refere-se a uma lei que proíbe passear com cães e gatos nas ruas. Partidário de um cinema de denúncia, Ghobadi já havia trabalhado com o mundo da música em seu filme anterior, Meia-lua (2006), que representou uma ruptura em sua obra, até então muito marcada pela estética do atroz e pela propensão em chocar através de imagens escandalosas, como em Tartarugas podem voar (2004) e Tempo de embebedar cavalos (2000).
Abbas Kiarostam, por sua vez, firmou-se como um dos cineastas mais interessantes do cinema mundial contemporâneo, e tem uma produção vigorosa e cada vez mais experimental investindo na questão do autor, que há muito o inspira. A família Makhmalbaf – o pai Mohsen e as filhas Samira e Hana – segue produzindo filmes de beleza bruta que encenam o cotidiano do Irã, apesar de estarem todos fora do país.
Jafar Panahi, de perfil mais contestador, foi preso em 2010, acusado de “ser conivente com a intenção de cometer crimes contra a segurança nacional do país e fazer propaganda contra a República Islâmica”. Ele apoiava o candidato opositor Mir Hossein Mousavi e filmava, sem autorização do governo, um documentário sobre a onda de protestos contra os resultados das eleições que, no ano anterior, reconduziram Ahmadinejad à Presidência.
No ano passado, enquanto esperava a revisão de sua sentença em prisão domiciliar, o cineasta, magro e abatido por uma greve de fome, foi filmado com um celular pelo amigo e diretor Mojtaba Mirtahmasb (hoje também detido). Além dos seis anos de reclusão, sem poder viajar ou falar com a imprensa, Panahi está proibido de filmar e escrever roteiros por 20 anos.
O cotidiano de Panahi no cárcere e sua relação com o cinema deram origem ao doloroso Isto não é um filme (2011). O longa saiu do Irã dentro de um bolo, em um pendrive, para estrear em Cannes e desatar protestos mundo afora pedindo a liberdade de Panahi.

Mohammad Rasoulof (Good bye, 2011; The white meadows, 2009), Rafi Pitts (The hunter, 2010), Mohammad Nourizad (Flags of Kaveh’s Castle, 2009) e Shirin Neshat (conceituada artista plástica que estreou na direção com Women without men, 2009) são outros nomes aos quais ficar atento quando sair a programação da Mostra e do Festival do Rio. Com filmes mais urbanos, que abandonam a poética lúdica e fabular do cinema iraniano dos anos 1990, esses diretores se aproximam de uma representação da vida agitada na metrópole, da cultura pop, do novo papel da mulher. Assim como Asghar Farhadi, eles estão interessados nas separações entre um Irã que quer se modernizar, mas que ainda tem que prestar conta às tradições.
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