Há cerca de 10 anos, o MERCOSUL tem sido uma vitrine de cenários de tensão e oposição entre seus membros, provocando uma perda de dinamismo no comércio intrazona e impedindo o consenso integracionista. A “alta tensão” ficou a cargo de A. Fernández e J. Bolsonaro. Com a chegada de Lula uma nova página parecia se abrir, mas ‘ah, Milei chegou!’ prometendo uma “motosserra” para tudo que se oponha à sua pregação “liberal”.
Emmanuel Macron foi particularmente pouco transparente na negociação do Acordo de Associação discutido na nossa nota anterior. Alberto Fernández, da Argentina, também contribuiu com sua parte nesse sentido. Portanto, se devemos procurar os responsáveis pelo fato do Acordo não ter sido assinado na última cúpula de presidentes, basta observar atentamente as formas refinadas de hipocrisia que levaram o “sim mas não” a níveis “diplomáticos”. em que uma afirmação é, ao mesmo tempo, uma negação.
A “preocupação” francesa e argentina com “a defesa da biodiversidade na bacia amazônica” foi apenas um pretexto para deixar intacto o protecionismo que sequestrou a França e, de alguma forma, a Argentina. Os fatos mostram que, por trás destas “defesas”, especialmente as francesas, não havia nada além de sólidos muros não tarifários bloqueando o comércio da UE com países terceiros. Assim como estão fazendo com o MERCOSUL, estão fazendo com a Austrália.
Nessa lógica, Macron pôde contar com Javier Milei, atual presidente da Argentina que durante a campanha eleitoral não escondeu sua admiração por Bolsonaro, assim como não poupou palavras e frases insultuosas contra o MERCOSUL e seus líderes. Mas, como vemos, ele mudará as suas promessas de campanha quantas vezes demande o “sucesso” do seu governo e das suas relações internacionais. Desta vez, sem pestanejar, jogou no lixo suas críticas ao MERCOSUL e disse que apoiaria a assinatura do Acordo.
Mas teremos que ver em que critérios ele o apoia. Por enquanto, é claro que o adiamento da assinatura do Acordo prejudica ambos os blocos em termos comerciais e, sobretudo, geopolíticos, especialmente no que se refere à UE e às suas intenções de ter maior impacto na América Latina. Enquanto a assinatura não chega, os EUA e a China continuarão tendo um campo aberto para os seus objetivos comerciais e geopolíticos.
Não seria surpreendente que a probabilidade de uma negociação comercial com a China, proposta pelo Uruguai, em paralelo, pudesse receber maior atenção dos governantes do MERCOSUL enquanto a UE continue colhendo margaridas.
Tudo isso enquanto na “grande pátria” se instala, abertamente, uma das maiores disputas geopolíticas, buscando o domínio sobre o lítio, o petróleo, os portos e os mares. Mais uma vez, em pleno século XX, a América Latina recupera o seu estatuto de território sem fronteiras para incursões imperiais cobertas por acordos comerciais, tecnológicos e logísticos ao mais alto nível.
Flickr/Mercosur
Enquanto a assinatura do acordo não chega, EUA e China continuam alcançando seus objetivos comerciais e geopolíticos
Se o Acordo for firmado:
- Seria configurado um cenário que facilitaria a construção de uma estratégia birregional com poder de limitar os impactos inconvenientes do sistema bipolar que a China e os Estados Unidos vêm protagonizando. O MERCOSUL poderia se beneficiar de uma aliança estratégica com uma das regiões mais estáveis do mundo num contexto internacional cada vez mais complexo e instável.
- 94% do PIB da América Latina seria comprometido, enquanto diminuiria os compromissos atuais com os EUA (44%) e a China (14%). O acordo UE-MERCOSUL interfere em quase 25% do PIB mundial, fato que confere maior presença e profundidade às relações da região com a UE e à associação com o mundo. Em questões geopolíticas, o acordo transforma a região num jogador global.
- Seria criado um mercado entre a UE e a América Latina com mais de 770 milhões de pessoas, excedendo, por exemplo, os 630 milhões alcançados pelo acordo UE-Japão em 2018. Um cenário deste tipo poderia ser uma plataforma para relançar o processo de integração intrarregional usurpadora por razões políticas e ideológicas.
- Melhoraria a produção de exportação de alimentos com valor agregado, especialmente derivados da produção pecuária: carne, laticínios, etc. Em 2022, 54,7% das exportações brasileiras de carne bovina (em volume) foram para a China e apenas 3,8% para a UE. E no período entre janeiro e setembro de 2023, apenas 13,2% de todas as exportações agrícolas brasileiras (valor) foram para a UE, em comparação com 53,5% para a Ásia.
- Favoreceria a reedição da onda integracionista dos anos 80 e 90 do século passado, embora sob condições de reformas e processos típicos destes tempos. Tanto a inteligência artificial como as guerras em curso, o crescimento explosivo da China, a insultuosa concentração de riqueza e os maiores abismos de desigualdade, são factores de elevada incidência no desenho de estratégias integracionistas.
- Seria um fator muito importante na reformulação da arquitetura do comércio global que, até agora, a OMC tem liderado. A onda de acordos comerciais e de investimento bilaterais ou interblocos dá sinais claros de uma nova forma de fazer comércio e finanças onde o multilateralismo cede espaço.
- Afetaria estruturalmente a oferta dos EUA feita na Cúpula das Américas de 2022 (Los Angeles). O próprio Biden ofereceu o “touro e o moro” embalado na Aliança para a Prosperidade das Américas com a intenção de frear a presença crescente da UE e da China na região, verdadeiros concorrentes na disputa pela hegemonia mundial e, agora, sobre seu “quintal”.
- Ambos os blocos melhorariam os seus níveis comerciais e as suas posições negociadoras com os EUA e a China, ou qualquer outro país com pretensões hegemônicas. Por exemplo, as exportações brasileiras de carne bovina, que hoje vão principalmente para a China (55%) poderiam ser redirecionadas para melhorar os escassos 3,8% que vão para a UE.
- O MERCOSUL retomaria o caminho de integração quase imobilizado nos últimos 10 anos. A sua importância geopolítica em tempos em que o multilateralismo está enfraquecendo frente ao crescente protecionismo é inegável. Seria uma clara expressão de vontades destinadas a encarar, de forma conjunta, os desafios da geopolítica internacional com regulamentações previsíveis e relativamente estáveis.
(*) Nilo Meza é economista e cientista político peruano.
(*) Tradução Rocio Paik.