Os militares brasileiros, desde há muito tempo e até os dias que correm, têm se mostrado como agentes políticos muitíssimo atuantes no âmbito da sociedade. Tal atuação já levou diversos estudiosos da temática castrense a alcunhá-los como uma espécie de partido, haja vista que eles possuem uma organização e uma base ideológica semelhante a um partido político formal, cujos dirigentes são alguns generais formados na Academia Militar das Agulhas Negras nos anos setenta do século passado os quais ocuparam, ou ainda ocupam, os cargos mais importantes nas instituições bélicas.
Este elevado empenho político foi classificado predominantemente como o exercício de um poder moderador. Com efeito, esta ação intermediária aconteceu diversas vezes na história de nosso país. Ocorreu no apoio à candidatura de Nilo Peçanha à Presidência da República em 1922, no Manifesto dos Generais em 1955 destinado a garantir a posse de Juscelino, o veto à posse de Goulart em 1961 e a exigência da instauração do parlamentarismo em seu governo. Também utilizaram seu arbítrio em vários golpes: proclamação da República em 1889, estabelecimento da ditadura de Vargas em 1930, implantação do Estado Novo também com Vargas em 1937, imposição da renúncia do próprio Vargas em 1945, eliminação da democracia em 1964 e tentativa de impedir a posse do atual presidente da República.
Tais manifestações de cunho eminentemente político, junto a outros desenvolvimentos e características, tais como as reorganizações modernizadoras nos primórdios do século 20 por meio das missões indígena e francesa; o elevado padrão de ensino da época, exigente do domínio de línguas; obtenção dos títulos de bacharel e doutor em Ciências Matemáticas e a atual formação de proeminente qualidade, realizada em período integral, eivada de línguas estrangeiras, estágios, estudo de várias áreas do conhecimento, passagens pelo território nacional, viagens a países estrangeiros, assimilação de um rigoroso código de ética, apresentação de monografias, dissertações e teses, se mostram como uma incontestável base que possibilita asseverar que os nossos servidores fardados se consideram mais qualificados que os civis, se imaginam como soldados salvadores, acalentam tutelar o Estado e se consideram merecedores da elevadíssima autonomia sobejamente revelada.
Malgrado esses dotes superlativos totalmente incompatíveis com a vigência do regime democrático, ocorreu após a entrega do poder aos civis, em meados da década de 1980, o recolhimento silencioso dos militares aos quartéis. Esse recolhimento deveu-se a diversos fatores: o desgaste político devido a permanência de vinte anos no poder; a manifestação de desavenças internas; o repúdio de civis em relação às atitudes antidemocráticas; a grande perda de prestígio no âmbito da sociedade; a criação do Ministério da Defesa chefiado por civis; a obrigação de conviver com governantes de partidos políticos de centro esquerda; a influência de sérios constrangimentos advindos do relatório da Comissão Nacional da Verdade; a derrocada da economia, exibidora do crescimento da dívida externa, dos empréstimos a juros elevados, da inflação nas alturas e do racionamento de combustíveis; a publicação do dossiê da Comissão de Direitos Humanos da ONU resultante de um relatório preparado pela Anistia Internacional.
Observe-se que nos anos que se seguiram, particularmente no final de março de cada um deles, vieram à tona as denominadas ordens do dia, as quais glorificavam o alcunhado movimento revolucionário de 64, uma denominação totalmente desacordada com estudos científicos concretizados por antropólogos, sociólogos, juristas e historiadores. É assombroso verificar que essas ordens, destinadas a justificar uma pretensa e acertada conduta, violentaram a tradicional e ostensiva atitude científica reiteradamente exibida pelos fardados. Além disso, eles não aproveitaram o extenso tempo e a quietude reinante no interior da caserna para fazer um necessário exame crítico dos vinte anos no exercício do poder.
Exército Brasileiro / Flickr
Formatura de oficiais temporários do Exército Brasileiro. 13/03/2020
Entretanto, passadas algumas décadas, resolveram dar um fim ao longo período de recolhimento. Liderados pelo partido verde-oliva, de maneira eufórica e convencida, manifestaram abertamente apoio a Bolsonaro em sua campanha eleitoral para o cargo de presidente da República. Destaque-se que um prestigiado general, adepto do poder moderador, ousou postar um tuíte esfíngico, persuasivo e caracteristicamente antidemocrático, no momento em que a magna corte da Justiça se preparava para julgar um habeas corpus que poderia favorecer o ex-presidente Lula. Causa estupefação verificar que o contínuo e animado sustento ao então capitão candidato se mostrou incoadunável com o rigoroso código de ética prevalente na caserna, haja vista sua execrável vida pregressa nos quartéis.
Com a obtenção da vitória, milhares de servidores de uniforme assumiram cargos na administração pública. O novo presidente tomou várias iniciativas para alcançar o acatamento e tornar a ação administrativa semelhante à rotina de um quartel do leste europeu da época da Guerra Fria. Transformou a gestão pública numa espécie de bunker repleto de militares. Estes, por sua vez, avançaram em direção a vários setores da esfera governamental, cujo destaque foi a área da educação, através das centenas de escolas cívico-militares. Atreveram-se intrometer até na Justiça Eleitoral porquanto o ministro da Defesa de então transmitiu ao presidente da Câmara dos Deputados uma mensagem sobre o condicionamento da eleição de 2022 ao emprego do voto impresso. Receberam várias deferências e incentivos do comandante supremo das Forças Armadas.
Nos primórdios de 2023 ,muitos profissionais das armas rejeitadores da vitória de Lula, tanto da ativa quanto da reserva, se envolveram em eventos condenáveis integrantes de uma tentativa de Golpe de Estado. Fizeram parte de manifestações grupais exigentes da intervenção do poder castrense para impedir a posse do eleito. Inúmeros quartéis acolheram e protegeram as carpideiras de guaritas ou os famigerados patriotas determinados a barrar a investidura do vencedor. Trataram com benevolência a choldra aversiva que depredou os prédios dos Três Poderes. Impediram a prisão imediata dos vândalos impatriotas causadores dessa infestação. Vale realçar o importante discurso do atual comandante do Exército a favor do regime democrático.
Essa desvairada aventura, incentivada pelo autoritário e tresloucado perdedor do escrutínio, que, se exitosa, seria seu principal beneficiário, acarretou sérias consequências para os fardados, porquanto muitos deles estão sendo acusados, investigados, processados e julgados pelas justiças civil e militar. E o mesmo comportamento anterior se repetiu, ou seja, de modo silente recolheram-se ao espaço interno da caserna e, pelo que se sabe até o momento, não exibiram a inadiável e imprescindível atitude crítica de repensar e avaliar os abusivos atos cometidos contra a democracia. É extremamente espantoso e preocupante verificar que no âmbito social ninguém veio a público até o momento cobrar dos servidores de uniforme a exteriorização de tal atitude, inclusive sobre a conduta de omissão face ao ativismo dos colegas insurgentes. Observe-se que a sua não ocorrência no passado deve ter contribuído para a manifestação dos atos deletérios do presente. Caso ela não venha a se apresentar na atualidade, é aceitável supor que poderá servir de estímulo à prática de futuras ações reprováveis e inaceitáveis.
(*) Antônio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes)