Nesta semana, o nome de Cláudia Ferreira voltou às manchetes, da pior maneira possível: os policiais que a mataram e violaram seu cadáver da forma mais atroz foram absolvidos pelo 3º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro. Na sentença, o juiz considerou que os agentes agiram em legítima defesa quando foram atacados por traficantes no Morro da Congonha, em Madureira, acertando – sem querer – a auxiliar de serviços gerais que saía para comprar pão. Uma conhecida história de apoio judicial à violência policial no Brasil.
Mais surpreendente, porém, foi a absolvição dos agentes frente às acusações de remoção ilegal e violação de cadáver, já que graças a um vídeo amador o país inteiro ficou estarrecido, há dez anos, com as imagens de uma viatura policial que arrastava um corpo exangue pelas ruas do bairro, preso por um pedaço de roupa, após cair do porta-malas, onde havia sido jogado pelos homens da lei em fuga, já que – segundo a versão dos agentes – no banco de trás havia armas, algo, portanto, mais valioso do que uma mulher negra entre a vida e a morte. O magistrado Alexandre Abrahão Dias Teixeira (que já foi homenageado pelo atual Presidente da Câmara de Vereadores do Rio por ter “pulso firme” em suas decisões judiciais contra bandidos) considerou que os policiais tentaram salvar a vítima e levá-la para o hospital e por isso não puderam esperar por uma ambulância no local do crime – ou melhor, do ‘acidente’ que matou mais uma pessoa preta e favelada por ‘bala perdida’ no Rio. Um argumento que não merece comentários diante dos vídeos divulgados e amplamente conhecidos.
A absolvição não ganhou o devido destaque na imprensa brasileira. Após um dia as manchetes já a haviam esquecido. E menos ainda na mídia internacional. Afinal, mais um caso de racismo, crueldade e violência policial sancionada pelo poder judiciário brasileiro não se configura como uma novidade aos olhos do mundo. Mas em Portugal, onde o caso tampouco recebeu atenção, este silêncio é ainda mais ensurdecedor, pois naquele país os movimentos sociais também lutam por justiça por sua própria Claúdia, outra mulher negra e trabalhadora vitimada pela violência estatal.
Cláudia Simões foi brutalmente agredida por um policial português em 2020, no bairro da Amadora, em Lisboa, que a deixou desfigurada e impedida de trabalhar por meses. Apesar da imprensa local esforçar-se por reforçar uma ascendência angolana, Cláudia é cidadã portuguesa. Mas não como todas as outras. Ao entrar num ônibus para levar sua filha à escola, um inferno sócio-racial começou em sua vida: como pensou que havia esquecido o passe-livre da filha (que é menor de 12 anos e tem direito ao transporte gratuito), ela foi expulsa da condução pelo motorista que, não satisfeito, chamou a polícia. Quando ela já estava na rua à caminho de casa para buscar o passe, foi covardemente atacada pelas costas com um mata-leão dado por um agente da Polícia de Segurança Pública (PSP), que seguiu aplicando-lhe golpes marciais até mesmo no chão. Ele somente a soltou quando Cláudia mordeu seu braço, em desespero, já prestes a sufocar. Sua filha em pânico viu a mãe ser arrastada para longe de si em meio àquela cena de violência gratuita e infame[1].
Mas o absurdo prosseguiu: Cláudia foi detida e levada dentro da viatura policial – sempre a viatura –, onde foi novamente agredida com socos e pontapés na cara, enquanto os policiais a chamavam de “puta” e “macaca”. Deu entrada na delegacia completamente desfigurada e até hoje sofre com as consequências do episódio: sua filha já tentou suicídio por se acreditar culpada pela violência sofrida pela mãe, ao esquecer o bilhete. Como se não bastasse, o Tribunal da Relação (instância de recurso) acolheu o pedido da defesa dos policiais e transformou Cláudia Simões em ré por suposta agressão dela (!) aos policiais: a mordida que deu em legítima defesa e salvou-lhe a vida agora virou base de acusação contra si própria, ainda em curso. Mais um escárnio judicial contra pessoas pretas e trabalhadoras em Portugal[2].
Hoje, quando muitos acreditam, até na esquerda brasileira, que podemos confiar no poder judiciário como defensor da democracia e das liberdades cidadãs, o trágico exemplo-duplo das Cláudias – Ferreira e Simões – precisa ser tomado como um alerta urgente. A casta judicial brasileira tem origem e ascendência na casta judicial lusitana, desde os tempos da colônia e até mesmo após a fundação das primeiras faculdades de Direito no Brasil – em São Paulo e Olinda –, que seguiram reproduzindo o modelo jurídico e político aprendido na Universidade de Coimbra. Um modelo criado junto com a escravidão racializada do Império Português, mas que persistiu ao fim do escravismo oficial na forma da colonialidade nas relações de poder até hoje, lá e cá: a classificação social baseada na ideia de raça[3].
Precisamos, mais do que nunca, forjar laços de resistência comum contra este mal que aflige a ambas sociedades. Um bom começo seria realizar uma homenagem conjunta às duas Cláudias, nos dois países, especialmente enquanto o julgamento de uma delas ainda corre. Poderia ser um elo diferente daqueles elos de sangue que historicamente marcaram as relações entre o Brasil e sua metrópole colonial. Sangue que ainda escorre das veias das pessoas pretas alvo da violência policial e da conivência judicial fundadas na matriz colonial.
Não é suficiente, portanto, condenar os indivíduos uniformizados que praticaram tais atrocidades (embora seja um começo). Importa, sobretudo, denunciar e lutar para transformar radicalmente as relações de poder coloniais incrustadas em nossos aparelhos repressivos estatais, desde as viaturas até as sentenças surreais. Mais uma luta, como muitas, que não se ganha nos tribunais.
(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.