Em geral, a chegada da primavera anuncia um clima mais agradável, oferece dias mais amenos e a possibilidade de sair mais às ruas sem as agruras do inverno. No hemisfério norte, o mês de maio consolida tais mudanças. Mais alegria e maior disposição tendem se espalhar por todos os cantos.
Na França, um novo ritmo do calendário político parece ter início cada vez que se aproxima o feriado do 1° de maio. As várias centrais sindicais, as demais entidades representativas dos trabalhadores e do movimento social em geral saem pelas ruas para manifestar apoio ao dia internacional de luta dos trabalhadores e para colocar na ordem do dia suas principais reivindicações. Este ano, em especial, a pauta continua sensibilizada pelos efeitos ainda presentes das conseqüências da crise econômico-financeira e pelo favorecimento de tratamento conferido ao capital quando comparado à debilidade das políticas públicas dispensadas pelo Estado em relação ao trabalho.
Logo em seguida, uma semana depois, todos os anos a sociedade francesa comemora também uma data a que se atribui uma grande importância política, em termos de registro de sua memória coletiva: no dia 8 de maio, um feriado nacional traz para o tempo presente a lembrança da derrota infligida às forças nazistas na Segunda Guerra Mundial em 1945. Assim, para a maior parte da população, a regra tende a ser a do não esquecimento desse tipo acontecimento histórico e o esforço de manter acesa a chama da luta contra as possibilidades de retrocesso político.
Leia a segunda parte desse texto neste link.
Em 2011, porém, esse período tem-se prolongado ainda mais em razão de algumas coincidências especiais. Neste ano, comemoram-se também os 30 anos da primeira vitória eleitoral das forças políticas de esquerda no país no pós-guerra. Exatamente no dia 10 de maio de 1981, o candidato François Mitterrand era eleito para o cargo de presidente da República. Ele estava à frente de um acordo político entre o seu Partido Socialista e o Partido Comunista, que se expressava por meio do chamado Programa Comum da Esquerda.
Construídas ainda nos anos 1970, as bases de um possível governo de união da esquerda previam a nacionalização de setores estratégicos para a sociedade e a economia francesas; medidas a favor dos trabalhadores (associadas a melhores salários, condições de trabalho e auxílio desemprego, entre outros); reforço da qualidade nos serviços públicos como saúde, educação e previdência social; além de outros pontos para conduzir a França a uma situação de menor desigualdade e maior solidariedade.
No entanto, após a vitória eleitoral, em pleno início da década de 80 do século passado, observou-se uma grande reviravolta na orientação política dos socialistas franceses. Encantados com o canto sereia das proposições do neoliberalismo (ainda em suas primeiras engatinhadas pelo mundo ocidental) e possuídos pelo desejo político de se diferenciar das forças políticas de maior tradição à esquerda, o PS passou a implementar como política de Estado um programa exatamente oposto a tudo que sempre havia sugerido ao longo de sua história de agremiação partidária.
Leia mais:
Imigrantes com doenças graves podem ser expulsos da França
Maioria dos franceses acredita que Strauss-Kahn é vítima de complô
Candidatura à presidência de Strauss-Kahn está 'seriamente comprometida', diz imprensa francesa
Diretor do FMI, Strauss-Kahn, é detido por suspeita de abuso sexual
Marine Le Pen, da extrema-direita, lidera primeira pesquisa presidencial francesa
O governo abandona o programa comum de esquerda, que havia sido a base inclusive para que Mitterrand houvesse recebido o apoio político dos demais partidos de esquerda para a disputa do segundo turno, quando venceu o candidato à reeleição da direita, Valéry Giscard d’Estaing, por 52% a 48% dos votos.
Assim, tem início um longo período em que alguns países europeus, governados por forças supostamente de esquerda, passam a ser utilizados como uma espécie de experiência de laboratório para implementação de políticas bastante conservadoras em termos da economia e de programas sociais. Além do caso da França com Mitterrand e o PS, chama a atenção a Espanha com Felipe Gonzalez e o PSOE (1982 a 1993), e depois a própria Inglaterra, com Tony Blair do Partido Trabalhista já na década de 90, dando continuidade aos enormes estragos provocados pela herança dos conservadores liderados por Margaret Thatcher.
A partir da metade de seu primeiro mandato, o governo de Mitterrand dá início à privatização de setores estratégicos do governo, medida que nem mesmo a direita de origem gaulista havia tido a coragem política de levar adiante.
Assim, foram vendidas ao capital privado empresas estatais na área de energia elétrica, transportes, telecomunicações, petróleo, bancos e outros. De uma forma geral, tratava-se de um processo de transição política e ideológica em direção oposta à essência mesmo de tudo aquilo que esteve na base do surgimento do movimento socialista na França e no mundo. Um encantamento com as benesses do capitalismo, em sua fase mais refinada do capital financeiro e dos grandes negócios proporcionados pela globalização. Um processo que muitos autores passaram a qualificar como sendo o “social-liberalismo”.
No entanto, é importante registrar que o sistema político francês apresenta uma singularidade. Trata-se de uma composição de uma república presidencialista com elementos de parlamentarismo. Apesar do estranhamento à primeira vista, há uma espécie de divisão de tarefas e atribuições entre o Presidente da República (escolhido pelo povo, em voto direto) e o Primeiro Ministro (escolhido pelos deputados eleitos). Ocorre que, em 1986, pela primeira vez, surgiu um ruído mais forte em termos da institucionalidade, pois o presidente eleito perdeu a maioria no parlamento.
Criou-se uma situação inédita, que passou a ser chamada de co-habitação no jargão da política francesa. A maioria parlamentar de direita escolheu Jacques Chirac como chefe de governo. Isso provocava certa dificuldade na condução da política governamental, uma vez que algumas atribuições constitucionais eram do presidente da República, como por exemplo, as Forças Armadas e as Relações Internacionais. A imagem pública de disputa política explícita passa a ser cada vez mais explorada pela imprensa. Afinal, qual dos dois é o elemento mais importante como liderança política? Quem pode reivindicar maior legitimidade para governar o país? O Presidente ou o primeiro-ministro?´
Até aquele momento, a previsão constitucional era de um mandato presidencial de sete anos, sem restrição para novas postulações. Assim, em 1988, Mitterrand busca a reeleição e vence novamente as eleições presidenciais. O candidato da direita, Chirac, é derrotado no segundo turno, na proporção de 54% a 46%. Mitterrand recupera a maioria no Congresso, mas vai perdê-la novamente mais à frente, em 1993, quando das eleições legislativas. Outra vez, volta a co-habitação.
Em 1995, a direita consegue vencer as eleições presidenciais. Outra vez apresentado como candidato, Chirac vence o candidato do PS, Lionel Jospin, na proporção de 53% a 47%. Jospin havia chegado à frente no primeiro turno, com 23% dos votos, mas a aliança da direita impede a vitória do PS no segundo turno. No entanto, apesar de toda a polarização e radicalização dos discursos nas disputas políticas nacionais, o fato é que a essência das políticas desenvolvidas pela direita e pelos socialistas não apresentava grande distinção.
Seja por meio dos autênticos representantes dos interesses do capital, seja por meio dos neo-convertidos aos ideais do social liberalismo, as mudanças vividas pela sociedade francesa não se desviavam muita da rota sugerida pelos fóruns da EU (União Europeia), onde a hegemonia era exercida por uma tecnocracia alinhada com os governos de países dirigidos por partidos de tendência social-democrata ou mesmo socialista. E ali, em Bruxelas, todos estavam muito bem e contentes com os rumos do liberalismo ortodoxo ditados pelo Banco Central Europeu, com os esforços de austeridade fiscal exigidos pela Comissão Europeia e com as demais recomendações conservadoras emanadas das instituições sediadas na capital da UE.
O quadro de deterioração das condições sociais e econômicas do país terminou por contribuir para o agravamento das tensões sociais de uma forma geral. E a revelação desse tipo de descontentamento passa a ocorrer de diversas maneiras. Desde o surgimento de manifestações políticas à margem dos partidos políticos e associações representativas mais tradicionais (como os movimentos de jovens da periferia de Paris e outras cidades de porte médio), até movimentos contra as decisões tomadas pela União Europeia que prejudicavam os interesses de setores expressivos da sociedade francesa, passando pela desilusão com a falta de perspectivas face ao desemprego estrutural crescente e sem solução à vista. E esse tipo de dificuldade viria a contribuir para a conformação do xadrez político da França, em especial para as eleições presidenciais em 2002.
* Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10. Texto publicado originalmente em Carta Maior.
Siga o Opera Mundi no Twitter
Conheça nossa página no Facebook
NULL
NULL
NULL