À medida que o ataque de Israel contra Gaza entra em seu quinto mês, ainda não está claro se ele se transformará em um conflito regional de grande escala. Entre os fatores decisivos está o Hezbollah, um dos atores não-estatais mais fortemente armados do mundo e, sem dúvida, o mais habilidoso em guerras urbanas e nas montanhas. Até o momento, o grupo se absteve de tomar medidas intensificação, com o objetivo de evitar o envolvimento libanês na guerra e, ao mesmo tempo, distrair parcialmente as Forças de Defesa de Israel (FDI) com ataques limitados a partir do norte. Em vez de atacar a infraestrutura vital israelense, o grupo tem realizado centenas de operações voltadas a postos militares avançados, forçando Israel a criar uma zona tampão interna, evacuando os seus cidadãos dos assentamentos do norte. Mais de 170 combatentes do Hezbollah foram mortos até o momento, mas o partido, que tem um número estimado de 50 mil a 100 mil combatentes treinados, pode lidar com essas perdas.
No entanto, há elementos da liderança política e militar israelense que parecem ter a intenção de provocar um grande confronto com o Hezbollah. Seus motivos são bastante evidentes. Em primeiro lugar, os membros do gabinete israelense, juntamente com o comando das FDI e o Mossad, sabem que sua melhor chance de permanecer no poder é prolongar a luta – e eles não hesitam em sacrificar seus próprios civis para conseguir isso. Em segundo lugar, é possível que, se Israel continuar a realizar assassinatos em massa sem atingir nenhum de seus objetivos de guerra declarados, ele se veja mais isolado no cenário internacional; ao passo que, se o Hezbollah começar a atacar cidades israelenses e atingir civis, o governo de Netanyahu poderá ressuscitar a fantasia de um estado democrático em perigo e reunir as “forças civilizatórias” em torno de sua causa. E, em terceiro lugar, existe o temor de que o Hezbollah possa algum dia lançar seu próprio “dilúvio de Al-Aqsa” na fronteira norte de Israel, o que levaria políticos de alto escalão, como Gantz, Gallant e Ben-Gvir, a conclamar um ataque preventivo.
Portanto, Israel tem tentado repetidamente provocar seu vizinho: alvejando civis no sul do Líbano e lançando ataques em outras partes do país. Comandantes do Hezbollah e do Hamas, incluindo Wissam Al-Tawil e Saleh Al-Arouri, foram assassinados em solo libanês, e Netanyahu ameaçou “transformar Beirute e o sul do Líbano em Gaza”. Mas o Hezbollah continua comprometido com uma guerra de baixa intensidade e, até o momento, recusou-se a responder com um grande ataque. O que explica essa decisão estratégica? Não é apenas o medo de mais destruição que está impedindo a escalada; é a consciência de que isso não necessariamente avançaria os objetivos do grupo, nem os do Eixo de Resistência.
Para entender o cálculo do Hezbollah, precisamos considerar a posição do Líbano na região. Desde que Obama anunciou o “pivô para a Ásia” em 2009, os EUA vêm tentando estabelecer uma nova arquitetura de segurança no Oriente Médio que lhes permita minimizar o envolvimento direto em guerras por procuração e se concentrar em conter a China. Como parte desse processo, o hegemon buscou normalizar as relações entre Israel e o mundo árabe, o que culminou nos Acordos de Abraão de 2020. Ao mesmo tempo, o Irã e a Arábia Saudita começaram a buscar a distensão – na esperança de reorientar suas economias, atrair investimentos e criar laços com os países vizinhos, ao mesmo tempo em que reduziam seus respectivos papéis nos conflitos regionais. No ano passado, os dois países chegaram a um acordo bilateral em Pequim, cujos detalhes permanecem obscuros, mas que parecem envolver um compromisso quando se trata de nações onde ambos exercem influência, como o Iêmen e o Líbano. Alguns analistas argumentaram que Mohammed bin Salman agora está pronto para cooperar com o Hezbollah e aceitar seu status de poder político e militar dominante no Líbano. Pode até ser do interesse dos sauditas ter uma forte força de dissuasão na fronteira de Israel, especialmente uma força pela qual eles não têm responsabilidade financeira ou política.
Dada a atual miséria econômica do Líbano, essa pode ser uma possível tábua de salvação. A espiral descendente do país começou em 2019, depois que os países do Golfo, liderados pela Arábia Saudita, cortaram a ajuda e se desfizeram de seus ativos imobiliários e financeiros. A contestação da hegemonia do Hezbollah foi citada como o motivo, embora a decisão também tenha ocorrido depois que as ramificações da crise financeira de 2008 finalmente chegaram ao Golfo, forçando seus líderes a reestruturar seus planos de investimentos estrangeiros. Agora, a classe política libanesa, incluindo elementos poderosos do Hezbollah, acredita que os acordos entre a Arábia Saudita e o Irã – que até agora perduraram após o dia 7 de outubro – podem permitir que eles voltem no tempo, para antes do colapso de 2019. Seu objetivo é reviver o modelo rentista que foi estabelecido no período pós-Mandato Britânico e consolidado durante o governo de Rafiq Al-Hariri na década de 1990: um setor financeiro dominante que sustenta o estado central por meio de empréstimos regulares e um mercado imobiliário dependente de influxos de investidores do Golfo e de expatriados libaneses. Eles também esperam que o sistema financeiro libanês possa agora servir como mediador para os investimentos do Golfo e do Irã na reconstrução da Síria.
Paul Keller
Simulacro de foguetes com as cores do Hezbollah apontando para Israel em uma rua de Bint Jbeil, no sul do Líbano
Com o acordo entre a Arábia Saudita e o Irã em vigor e os efeitos da crise financeira tendo passado, as barreiras ao investimento no Líbano poderiam ser removidas e a legitimidade do Hezbollah poderia ser reconhecida em toda a região. Além disso, se o Irã espera reduzir seu envolvimento em conflitos regionais e estabelecer parcerias econômicas duradouras com antigos rivais, é possível que queira que o Hezbollah faça o mesmo: reduzir sua atividade militar no Líbano e na Síria e, em vez disso, concentrar-se no renascimento econômico e na “boa governança”. Não se deve fazer declarações categóricas sobre a relação entre o Irã e o Hezbollah, pois seus contornos não são claros e o Hezbollah dificilmente pode ser descrito como um simples proxy (agente). Mas a perspectiva da política externa de Teerã parece, à primeira vista, estar alinhada com a abordagem do Hezbollah em relação a Gaza nos últimos meses.
Isso também parece estar de acordo com os interesses de Washington, que quer evitar que a guerra envolva o Oriente Médio todo e, segundo informações, tem feito esforços diplomáticos para convencer o Hezbollah a continuar sua política de contenção. Embora os detalhes permaneçam obscuros e não confirmados, informações de autoridades iranianas e da mídia afiliada ao Hezbollah sugerem que a Casa Branca ofereceu ao Hezbollah um novo “acordo para toda a região”, desde que ele não amplie a guerra. Habib Fayad, um jornalista libanês (e irmão de um deputado do Hezbollah), argumentou que os americanos aceitariam ceder o controle do Líbano ao Hezbollah, com a condição de que o partido se comprometesse a nunca lançar uma incursão ao estilo da realizada pelo Hamas no 7 de outubro em Israel.
No entanto, esse suposto acordo também pode criar um dilema para o Hezbollah. Anteriormente, o grupo conseguia evitar a responsabilização pela crise econômica libanesa, já que não tinha vínculos com os setores bancário e imobiliário. Ele poderia usar sua condição de movimento militar transnacional para se distanciar dos partidos políticos nacionais do Líbano, odiados por sua má administração e corrupção. Se o Hezbollah aceitasse essa oferta americana, alguns de seus quadros temem que isso sinalizasse sua lenta transformação em algo mais parecido com um partido convencional: integrado ao establishment, sem sua energia insurgente. Ainda é incerto se ele tomará esse rumo. O grupo é composto tanto por políticos, a maioria dos quais não têm formação militar e que podem ser favoráveis a essa “normalização”, quanto por uma facção militante – mais representada na liderança do partido – que reluta em ser cooptada.
A situação atual, portanto, parece ser de profunda assimetria. Israel, que está se afundando no campo de batalha e se desprestigiando internacionalmente, está sob pressão para definir algum tipo de desfecho para sua guerra. O Hezbollah, por sua vez, não tem restrições temporais reais. À medida que os combates se arrastam, ele acredita que pode renovar sua credibilidade – que foi prejudicada durante a guerra civil síria e os protestos de 2019 no Líbano – alcançando um equilíbrio entre a solidariedade armada com a Palestina e a preocupação com a segurança libanesa. Isso não quer dizer que o Hezbollah esteja meramente instrumentalizando o conflito; sua dedicação à causa palestina é genuína e não deve ser subestimada. A questão é que Israel e o Eixo de Resistência estão operando em dois cronogramas diferentes, um mais urgente que o outro.
Ainda assim, a política do Hezbollah pode ser revertida se a guerra regional for considerada necessária ou inevitável. Hassan Nasrallah tem afirmado repetidamente que, nessas circunstâncias, suas forças se engajariam sem limites ou restrições – o que, de acordo com alguns comentaristas libaneses, poderia significar atacar alvos israelenses estratégicos, incluindo fábricas de nitrato de amônia, além de usinas petroquímicas e de energia, em uma tentativa de compensar o desequilíbrio militar significativo entre os dois lados.
Se o Hezbollah está atualmente adotando uma estratégia de não escalar o conflito e afirmando sua disposição de negociar com Israel sob a condição de um cessar-fogo, é porque está confiante de que pode consolidar seu poder no Líbano e em toda a região. Em outras palavras, o Hezbollah ainda tem algo a perder ao entrar em uma guerra em grande escala. Mas se o Hezbollah passar a entender esse tipo de guerra – que poderia devastar o Líbano, danificar a infraestrutura militar do partido e comprometê-lo politicamente – como inevitável, então ele não terá nada a perder. Nesse caso, Israel pode acabar com uma presença poderosa em sua fronteira norte: fortemente armada e não mais interessada em contenção.
(*) Tradução de Raul Chiliani