Quando sou vítima, ou um membro de minha família ou um amigo o é, de uma
agressão criminosa é justo, razoável e humano que me surjam e inspirem
sentimentos de vingança contra o autor do delito. Mas não é justo,
razoável ou humano que o Estado puna este criminoso inspirado por
sentimentos semelhantes de vingança.
Quando Édipo opta por usar da investigação para esclarecer os desígnios
do oráculo, mais do que uma belíssima peça trágica, conforma-se ali um
dos pilares do que hoje temos como civilização ocidental: o inquérito ou
o processo, em oposição ao obscurantismo das ordálias da Idade Média.
Trata-se da noção elementar de que as decisões estatais punitivas devem
ser antecedidas por um itinerário de atos racionalmente estabelecidos
por meio de mecanismos de contradição dialógica, onde ao acusado abre-se
a possibilidade não apenas de apresentar sua versão dos fatos, mas de
ter direito a uma decisão motivada que responda a seus argumentos.
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De formas jurídicas e politicas diversas, este valor está presente em
quase todas as formas de Estado e regimes políticos desde o
renascimento. Mesmo regimes políticos profundamente autoritários, como o
Stanilista, procuraram usar do processo e da investigação como
supedâneo de suas condenações, ainda que como farsa. Uma exceção foi o
regime nazista, que matou amplos contingentes populacionais por razões
meramente étnicas, mas também estamos falando do nazismo, um dos piores
momentos da história humana no planeta.
Mesmo nas autoritárias teorias do “direito penal do inimigo”, há a
presença central da investigação e do processo como essência da
atividade punitiva, ainda que com flexibilizações nas garantias e
direitos do “inimigo”, por se tratar de pessoa que não cumpre certas
expectativas de adesão mínima à ordem estabelecida.
No Estado Democrático de Direito, conformado por valores como submissão
das decisões estatais ao direito e aos valores liberais e democráticos
de convivência política, é evidente o papel de condição necessária à sua
caracterização que o direito fundamental ao processo e à legítima
defesa ocupa no sistema.
Ao contrário do que o senso comum e os sentimentos de vingança
estimulam, o grau de civilidade de uma sociedade pode ser medido pela
forma como trata os seus culpados. Mesmo o pior e mais notório dos
criminosos não deve ser tido como um ser não humano, desprovido dos
direitos mínimos que sua condição humana lhe oferece.
Na lógica do regime democrático de direito, mesmo o inimigo em caso de
conflito tem direitos mínimos a serem observados, dentre estes, o de ser
punido apenas após investigação e processo. Os agentes dos crimes
lesa-humanidade do Nazismo, que mataram milhares de pessoas com suas
atrocidades, só foram devidamente punidos após investigação, processo e
juízo motivados pelo tribunal de Nuremberg.
Osama Bin Laden cometeu crimes gravíssimos. Se incomparáveis em extensão
aos crimes do terrorismo de Estado nazista, a eles foram análogos em
perversão, crueldade e na fundamentação antietnica, excludente,
intolerante e irracional.
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Entretanto, deve-se registrar que a ação empreendida pelo Estado
norte-americano para puní-lo por seus delitos não observou os valores
mais comezinhos do processo e dos direitos mínimos que qualquer ser
humano deve ter face à ação estatal.
À parte o debate quanto a ofensa ou não da soberania do Estado do
Paquistão, pela presença em seu território das forças armadas de outro
país, e à parte a ausência de cumprimento das normas de segurança global
para este tipo de ação, não contando com qualquer autorização do
Conselho de Segurança do ONU para tanto, é de se reconhecer que o
direito de Bin Laden a ser julgado por seus crimes, perante qualquer
tribunal que seja, não foi observado.
Ainda que se alegue que foi morto em combate com as forças que o
aprisionavam, nada justifica a ausência de uma investigação racional e
independente do ocorrido, para que se pudesse apurar se o que houve foi
efetivamente uma ação legítima ou mera execução, como se faz em qualquer
ocorrência policial com morte ou em qualquer evento de morte de
prisioneiros em caso de guerra.
O “sumiço do corpo”, convenhamos, é conduta de homicida, não de defesa
legítima de agente estatal. O descarte do corpo no oceano inviabiliza
qualquer perícia ou forma de verificação racional do ocorrido, impede a
investigação objetiva dos fatos.
Por óbvio, o mais relevante de tais fatos não é o destino pessoal de Bin
Laden. Não quero aqui produzir qualquer argumento que possa parecer
lamento pela morte de um terrorista que professa um fundamentalismo
fascista que não consigo aceitar como mera “tipicidade cultural”.
Mas, efetivamente, a morte do terrorista desnuda o véu pretensamente
democrático e de direito de nossas relações internacionais. Se nas
relações políticas internas da maioria dos países ocidentais a
contemporaneidade produz inegáveis avanços na direção da democratização
da vida política, o que pressupõe relações de poder cada vez mais
submissas ao direito, no plano das relações globais, internacionais,
noções como direitos humanos, respeito à soberania e submissão dos
Estados mais fortes a regras de direito são ainda meras quimeras
simbólicas, servindo, quando muito, como mecanismos de solução de
problemas de países menos relevantes ou discurso legitimador de outros
interesses falseados.
Além de nossas relações internacionais não terem ainda evoluído para uma
conformação mais liberal e democrática, ainda permanecendo no patamar
de medição de força bruta, de política como capacidade de discriminação
do inimigo, de perspectiva Schmittiana e decisionista e não democrática
de direito, sofremos hoje a ação de uma governabilidade global de
polícia.
As Forças Armadas dos Estados de primeiro mundo vão se transformando,
cada vez mais, de forças de defesa territorial e de soberania estatal em
aparatos de polícia global. E ainda uma força de policia insubmissa, de
fato, a qualquer regra de direito, sujeita apenas aos interesses de
seus Estados de origem ou de grandes corporações e interesses
econômicos.
O mundo vive um momento esquizofrênico. De um lado, feição democrática
nas relações internas, e imperial, absolutista, de polícia, nas relações
globais.
Enquanto os Estados mais fortes não forem submissos a regras de direito,
idéias como direitos humanos e cidadania global não passarão de mero
recurso retórico, imagens forjadas apenas para satisfazer ao espetáculo
que encobre a vida nua, que, ao invés de a expor, serve para ocultá-la.
*Pedro Estevam Serrano é advogado, sócio do escritório Tojal, Teixeira Ferreira, Serrano e Renault advogados associados, mestre e doutor em direito do Estado pela PUC-SP
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