É impactante verificar o quanto os dois primeiros meses de um governo podem ser didáticos e instrutivos.
Após desistir de argumentar que comunismo não existe mais em nenhum lugar do planeta, nem na Rússia ou na China, ou que o PT não transformaria o país numa Cuba ou Venezuela, o que vemos com a simples recuperação da possibilidade de um governo funcional é o grau de deformação das visões de democracia e de capitalismo por parte dos setores endinheirados da população e de seus porta-vozes na política e na mídia.
“Setores endinheirados” obviamente não é uma categoria social sólida e plutocracia é abstrato para boa parte de população, mas a questão é que aqueles que dão as cartas e a cara da economia brasileira merecem ser chamados de muitas coisas mas não de elite.
Desde janeiro estamos aprendendo muito sobre o funcionamento do capitalismo sem risco que sempre se apresenta, é claro, preocupado com a geração de emprego e tendo como exigência a previsibilidade dos contratos.
E em apenas dois meses descobrimos que três dos homens mais ricos do país deram um golpe nas Americanas equivalente ao que investiram na compra de parte da Eletrobrás; que o neto de Roberto Campos, atual senhor feudal do Banco Central, se nega a discutir a taxa de juros com o governo, mas consulta os banqueiros antes de fixar as “expectativas” de inflação; e que o simpático setor vinícola do Rio Grande do Sul vem oferecendo excelentes resultados aos seus acionistas, mas não tinha percebido que usava mão de obra escrava na colheita da matéria prima, por meio do “moderno” recurso da terceirização.
No primeiro caso, o golpe foi de 40 bilhões de reais (atenção revisão: é BILHÕES mesmo), empurrando o prejuízo para uma série de bancos e acionistas minoritários, com os magnatas, no auge da boa vontade, se dispondo a repor 7 bilhões.
Bruno Spada/MME
Controle acionário da Eletrobrás está sendo disputa pela Lemann, Sicupira e Telles
Os que insistimos em ler jornais aprendemos que eles estão protegidos por uma legislação que separa as dívidas de uma empresa do patrimônio de seus controladores. Em outras palavras, falir uma empresa pode ser um bom negócio para quem a controla. Não é bom para quem emprestou dinheiro a ela ou para quem nela trabalha, mas quem se importa?
Aqueles que continuaram curiosos descobrimos que o suposto “erro contábil” foi legitimado por duas empresas de auditoria, a KPMG e a PwC (também conhecida como Price Waterhouse Coopers) que não perceberam aquela mixaria nos sucessivos balanços.
E pouca gente na imprensa botou o tico pra conversar com o teco e lembrar que a mesma PwC foi a responsável pela avaliação da Eletrobrás, em que os indefectíveis Lemann, Sicupira e Telles estão disputando o controle acionário.
O grupo é conhecido no mercado por um estilo de gestão interessado nos lucros a curto prazo, que já vitimou a Heinz, multinacional de alimentação, dando prejuízo até ao “multi megainvestidor” Warren Buffet.
Esse estilo é basicamente enxugar custos, reduzir pessoal e eliminar qualquer tipo de investimento em pesquisa e desenvolvimento. Funciona para cerveja, mas o que pode significar para uma empresa como a Eletrobrás?
Tudo é limpo, asséptico e se passa em pontes aéreas entre Zurique e Nova York. Talvez por isso não tenha tanta repercussão quanto o bolsonarismo explícito da Associação Comercial de Bento Gonçalves ou o indefectível machão vociferante na Câmara de Vereadores, que já foi expulso do partido, está ameaçado de cassação de mandato e até do abandono pela mulher.
Sem nenhuma simpatia pela nefasta figura, há a considerar que ele se diz arrependido e pede desculpas. O executivos da vinícolas, os heróis da Forbes e o shogun do Banco Central, não.
(*) Carlos Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.