A tentativa de compreender a conjuntura deste início de governo federal pode ser uma experiência tortuosa, tanto para brasileiros quanto para estrangeiros. Especialmente se a fonte para isso for – como é quase inescapável para quem não tenha poderosos insiders – a grande mídia corporativa.
É fato que já não se pode falar dela como um grande bloco uniforme, o que se evidenciou sobretudo com a cobertura dos acontecimentos do dia 8 de janeiro e seus desdobramentos. A Globo não tem o mesmo tom que as emissoras controladas direta ou indiretamente pelas organizações evangélicas.
Na imprensa escrita [ou no que resta dela] posições tradicionais se inverteram, com a Folha assumindo posições mais claramente antipetistas [ou antilulistas, ou simplesmente antidemocráticas] que o tradicionalmente conservador Estadão, e com O Globo acompanhando a emissora carro chefe do grupo.
Feito o registro da relativa heterogeneidade, importa identificar algumas recorrências que poderíamos chamar de estruturais.
A primeira é a dificuldade em reconhecer que Lula ganhou a mais improvável das eleições, contra a quase unanimidade do grande capital, os blocos midiáticos que apostaram até os 40 minutos do segundo tempo numa terceira via fantasmática, uma parcela ainda não avaliada das forças armadas e policiais e boa parte de uma estrutura de Estado aparelhado de maneira inédita na história recente do país.
Que parte da mídia e de alguns setores empresariais tenham começado a precificar a vitória de Lula depois de meses de liderança nas pesquisas de intenção de voto não muda essa, mais do que análise, constatação.
A segunda é a curiosa dificuldade em estabelecer com clareza as relações entre bolsonarismo e forças armadas, ou mais precisamente o que alguns analistas fora da mídia corporativa chamam de “Partido Militar”.
Pese a todas as evidências, inclusive as memórias do “marechal” Villas Bôas de que o ex-capitão, expulso do exército por ameaça terrorista, foi construído como candidatura desde 2014 para executar o novo tipo de golpe [híbrido, primavera, euromaidan ou como se queira chamar], ainda se tenta estabelecer uma separação entre as Forças Armadas “como instituição” e os “setores bolsonaristas” que, curiosamente, estariam tanto no alto como no médio e no baixo oficialatos.
Ricardo Stuckert
Tarefa de reconstrução do Brasil depois do desastre bolsonarista pode ser pesada demais até mesmo para uma liderança experimentada como Lula
Separação que não é usualmente feita quando se fala da corrupção do mundo político ou partidário. A grande mídia nos alimentou – e ainda nos alimenta – durante anos com as versões do “PT corrupto” ou dos “políticos corruptos” sem oferecer aqui a mesma ressalva separadora de pessoas e instituições dedicada às forças armadas.
Impressiona que, mesmo depois do 8 de janeiro, ainda se insista em falar em “tensão” ou “desconfiança” entre Lula e militares quando a pergunta que democratas, ou defensores do mais falado do que compreendido “estado democrático de direito”, deveriam fazer é: como desmilitarizar o Estado brasileiro.
Segundo as notícias disponíveis, até agora o governo Lula teria exonerado cerca de 200 militares lotados nas proximidades da inteligência e da segurança presidenciais. E isso à custa de vários sobressaltos, como a exoneração do próprio comandante do Exército.
Mas a mesma imprensa nos lembra reiteradamente que haveria cerca de 8 mil militares, da ativa ou da reserva, em cargos governamentais, um número imenso deles em funções sem nenhuma conexão com a formação militar, como demonstrou cabalmente a criminosa [sim, não foi ineficiente ou equivocada] gestão do Ministério da Saúde.
Então, supondo que não houvesse redução de ritmo na tarefa higienizadora, que não faltará quem a chame de expurgo, Lula levaria metade do seu mandato para reconstituir um aparelho de Estado formado majoritariamente por civis.
Como a esta altura já está evidente que o “mundo da política” não lhe dará nem mesmo o benefício dos chamados 100 dias de trégua – e muito menos o ubíquo conglomerado de interesses rentistas que se oculta por trás do codinome mercado – a tarefa parece pesada demais mesmo para uma liderança experimentada como Lula.
Talvez isso só seja possível se o presidente deixar de ser a “ala esquerda” de seu próprio governo, como têm indicado vários analistas, para atuar como quem decide a partir de diferentes pressões e demandas, que é o que cabe a um presidente.
E para tal será necessário que os setores populares, que garantiram sua eleição contra todas as forças contrárias, superem a ilusão de que Lula sozinho será capaz de levar adiante a redemocratização do país. Ou de que isso seja tarefa viável para apenas um mandato presidencial.
Carlos Ferreira Martins é professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP-São Carlos